O Estado de S. Paulo, n. 46915, 30/03/2022. Internacional, p. A9

Negociação com a Ucrânia avança em meio a dificuldade russas no front


 

A rodada de ontem de negociações entre russos e ucranianos na Turquia parece ter avançado em direção a um possível acordo. As duas delegações discutiram o cessar-fogo e garantias de segurança para a Ucrânia, que se colocou à disposição para adotar a neutralidade. Após a reunião, Moscou afirmou que reduzirá a atividade militar em Kiev e Chernihiv e pode marcar um encontro entre os presidentes Vladimir Putin e Volodmir Zelenski.

A decisão de reduzir os ataques contra Kiev e Chernihiv foi anunciada pelo vice-ministro da Defesa da Rússia, Aleksandr Fomin. "O objetivo é aumentar a confiança mútua e criar as condições necessárias para novas negociações e alcançar o objetivo final de concordar com a assinatura do acordo de paz", disse o russo.

Tática. Analistas, no entanto, não deixaram de notar que o avanço russo no norte da Ucrânia já havia estagnado, com as tropas ao redor de Kiev assumindo posições defensivas diante dos contraataques ucranianos, que também obtiveram ganhos perto das cidades de Sumy e Kharkiv. "A desescalada é um eufemismo para recuo", disse Lawrence Freedman, professor de estudos de guerra no King's College, de Londres.

"A Rússia não está em condições de negociar seriamente, porque ela precisa se posicionar melhor na guerra", disse François Heisbourg, analista da Fundação para Pesquisa Estratégica, um grupo francês. "Esta é uma chance para os russos se consolidarem, se reagruparem, se retirarem de lugares fora de alcance logisticamente, onde já ficaram sem comida e munição."

Os EUA e seus aliados europeus também reagiram com cautela às promessas da Rússia de reduzir a pressão militar. O presidente americano, Joe Biden, disse que não acredita em um recuo até que ele aconteça de fato e garantiu a manutenção das sanções. "Vamos ver se eles (os russos) cumprem o que estão sugerindo", disse. O secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, reagiu com o mesmo ceticismo. "Existe o que a Rússia diz e o que a Rússia faz."

Após o anúncio, assessores de Biden confirmaram que a Rússia começou a retirar algumas tropas da capital ucraniana, no que seria uma importante mudança na estratégia russa. De acordo com eles, no entanto, o movimento era mais um remanejamento de soldados do que uma retirada.

Desconfiança. O governo britânico também viu sinais de redução dos bombardeios russos em torno de Kiev, mas insistiu que o Reino Unido julgará as promessas da Rússia por suas ações e não por palavras. "Não queremos ver nada menos do que uma retirada completa das forças russas do território ucraniano", afirmou Max Blain, porta-voz do primeiro-ministro, Boris Johnson.

Ontem, Biden participou de uma videoconferência que reuniu Johnson, o chanceler alemão, Olaf Scholz, o presidente francês, Emmanuel Macron, e o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi. Os cinco líderes concordaram em aumentar a pressão sobre a Rússia e enviar mais armas para a Ucrânia.

A desconfiança tem como base o fato de que, apesar da promessa de reduzir os ataques no norte da Ucrânia, as bombas continuaram a cair ontem por todo o país. Um bombardeio russo destruiu grande parte de um prédio do governo regional na cidade de Mikolaiv, deixando 7 mortos, 22 feridos e pelo menos 11 pessoas presas nos escombros, segundo o governador, Vitali Kim. Mísseis russos também destruíram um depósito de petróleo na região de Khmelnitski, no oeste da Ucrânia.

Em Mariupol, a situação da população, cercada há vários dias, se agrava diariamente. Ontem, o Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) pediu à Rússia e à Ucrânia que cheguem a um acordo para a retirada de civis, já que comida e água estão no fim. "O tempo está acabando para as pessoas em Mariupol", disse a CICV, em comunicado.

Envenenamento. A Ucrânia aconselhou ontem seus negociadores a não comer, beber ou tocar em qualquer coisa durante as negociações com a Rússia, após alegações de que o oligarca russo Roman Abramovich e outros mediadores podem ter sido envenenados durante reuniões anteriores.

"Aconselho a qualquer pessoa que vá negociar com a Rússia que não coma nem beba nada, de preferência evite tocar em superfícies", disse o chanceler da Ucrânia, Dmitri Kuleba, em entrevista à emissora de TV Ukrayina 24/  NYT, WP, Reuters e AP.

Ceticismo

Americanos e europeus reagiram com cautela às promessas da Rússia de reduzir os ataques a Kiev