O Globo, n. 31521, 25/11/2019. Economia, p. 15

Efeito da crise argentina
Eliane Oliveira


A crise na Argentina derrubou as exportações brasileiras para o país, dificultando a recuperação da indústria nacional. Pela primeira vez em 16 anos, o Brasil terá déficit comercial como vizinho, que enfrenta forte recessão. O desempenho contamina as vendas para o Mercosul e demais países da região, destino de boa parte dos manufaturados brasileiros. Nos dez primeiros meses do ano, as exportações para a América do Sul caíram 23%. Os segmentos de automóveis, autopeças e calçados estão entre os mais afetados.

Na Argentina, o cenário é agravado pelas incertezas sobre como será o relacionamento entre os presidentes brasileiro, Jair Bolsonaro, e argentino, Alberto Fernández, que toma posse no próximo dia 10. Dados do Ministério da Economia mostram que, de janeiro a outubro deste ano, o saldo comercial com o país vizinho está negativo em US$ 621,8 milhões, e poderá chegar a US$ 1 bilhão, segundo estimativa da Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB). A virada é grande, levando em conta que o Brasil teve superávit de US$ 3,861 bilhões em 2018.

— Infelizmente, essa situação com o Mercosul era previsível, por conta do cenário na Argentina. O déficit vai continuar em 2020 — disse o presidente da AEB, José Augusto de Castro.

Considerando os quatro parceiros do Mercosul, as exportações brasileiras recuaram 33,46% entre janeiro e outubro, na comparação com igual período de 2018. A queda nas vendas também é verificada em outros mercados sul-americanos. Apenas Peru e Colômbia registraram leve crescimento. O temor é que a fragilidade das exportações para a região se agrave com a turbulência econômica e política que se instalou em alguns vizinhos, como Chile, Bolívia e, mais recentemente, Colômbia.

Para Castro, a saúde da economia argentina é fundamental para a indústria nacional, que ainda engatinha na sua recuperação. Em setembro, a produção industrial avançou 0,3% em relação a agosto, mas o setor ainda acumula queda superior a 1% nos nove primeiro meses do ano.

BUSCA DE NOVOS MERCADOS

Técnicos das áreas econômica e de comércio exterior do governo afirmam que, quanto melhor for a saúde das economias dos vizinhos, mais o Brasil tem a ganhar. A Argentina é uma das principais preocupações neste momento, uma vez que o país é o terceiro maior comprador de produtos brasileiros, atrás apenas de China e EUA.

Argentina, Paraguai e Uruguai são o destino de US$ 20,9 bilhões em exportações brasileiras. Absorvem 20,4% dos produtos manufaturados e compram 25,6% dos produtos de alta e média-alta intensidade tecnológica exportados pelo Brasil, segundo a Confederação Nacional da Indústria (CNI). Os dados fazem do Mercosul o maior mercado de bens intensivos em tecnologia brasileira, à frente de China, EUA e União Europeia.

No período de janeiro a outubro deste ano, os embarques de automóveis para o mercado argentino despencaram mais de 50%. De acordo com a Anfavea, que reúne as montadoras, de 2018 para 2019, a fatia da Argentina na pauta de exportações do setor, que respondia por cerca de dois terços das vendas ao exterior, recuou à metade.

Para compensar a perda, as montadoras aumentaram os envios para países como México, Colômbia e Peru, mas a estratégia não foi suficiente para substituir a demanda argentina. Isso impactou negativamente a produção nacional de veículos neste ano.

Outro segmento bastante afetado foi o de motocicletas. De acordo com Marcos Fermanian, presidente da Abraciclo — que representa os fabricantes — este ano, a expectativa é que as exportações totais de motos para todos os mercados externos somem 34.000 unidades, queda de 40,5% ante 2018. Para o próximo ano, o volume exportado deverá atingir 30.000 unidades, recuo de 11,8% em relação ao previsto para 2019.

— A Argentina representa o principal mercado para as motocicletas produzidas no Polo Industrial de Manaus. De janeiro a outubro, foram embarcadas 15.054 unidades para o país vizinho, ou 47,1% do total exportado. A crise argentina impacta diretamente nossos negócios. Por isso, estamos buscando outros mercados na América Latina — afirmou Fermanian.

As vendas de calçados para o mercado argentino recuaram 31,2% neste ano, em relação a 2018. O presidente da Abicalçados, Haroldo Ferreira, teme que a vitória de Alberto Fernández torne o país um mercado protecionista, ao contrário do regime liberal de Maurício Macri:

— Com Macri, não havia barreiras às nossas exportações, mas a economia estava muito fraca.

O desempenho exportador brasileiro também foi ruim para os demais sócios do Mercosul. Nos dez primeiros meses de 2019, o Uruguai reduziu em 21,3% as compras de itens brasileiros. Ontem, houve eleições presidenciais no país . Para analistas, caso o candidato da oposição Luis Lacalle Pou, do Partido Nacional, de centro-direita, vença, a tendência é de maior aproximação com o governo Bolsonaro, o que pode beneficiar o comércio bilateral.

COMPRAS CANCELADAS

Já as vendas de produtos brasileiros para o Paraguai caíram 19,36% entre janeiro e outubro. Ainda assim, algumas empresas do setor agrícola têm conseguido elevar suas exportações para o país:

— O único país do Mercosul par aonde nossas vendas cresce mé o Paraguai. Tiramos a Argentina do foco. Cancelamos algumas vendas, porque clientes argentinos pediram 90 dias para pagar e achamos melhor esperar — disse Lucas Santana, dono de uma empresa exportadora de café.

Considerando todos os países da América do Sul, o recuo nas exportações foi de 23,63% até outubro. País que já foi um dos cinco maiores mercados para o Brasil, a Venezuela,hoje, é cada vez menos expressiva na nossa pauta de exportações.

A balança comercial coma Bolívia já estava sendo afetada antes mesmo da convulsão social agravada pela renúncia do ex-presidente Evo Morales e deve ficar pior para o lado boliviano. Até recentemente, o Brasil só tinha déficits com aquele país, em torno de US$ 1 bilhão por ano. Agora, as importações de gás natural da Bolívia estão em queda livre. No período analisado, as compras diminuíram 26%.

“Infelizmente, essa situação com o Mercosul era previsível, por conta do cenário na Argentina. O déficit vai continuar  em 2020”

José Augusto de Castro presidente da AEB