O Estado de S. Paulo, n. 46922, 06/04/2022. Notas e Informações p. A3

Bandeiras do retrocesso



Retrocesso é uma palavra fraca, e até gentil, para resumir as propostas de líderes empresariais empenhados em recriar uma aberração, a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), e em fortalecer o arbítrio político sobre setores hoje disciplinados por agências reguladoras. Se tiverem sucesso, atenderão à fome pantagruélica do Centrão e ao intervencionismo do presidente Jair Bolsonaro. Reunidas no Instituto Unidos Brasil, cerca de 60 empresas devem apresentar ao Congresso três propostas desenhadas, segundo fontes citadas pelo Estadão, para “melhorar o ambiente de negócios”.

A recriação da CPMF, com outro nome e com uma alíquota próxima de 0,1%, é apresentada como forma de compensar a desoneração da folha de salários. Propor a compensação é um cuidado elogiável, mas a solução é muito ruim. Além de ser cumulativa, a CPMF é um tributo muito peculiar, estranho aos padrões seguidos, modernamente, no mundo civilizado. Não incide especificamente sobre a produção e a comercialização de bens e serviços, nem sobre operações financeiras, nem sobre rendimentos (salários, lucros, juros ou aluguéis). Incide sobre a mera movimentação de dinheiro.

Quando uma pessoa compra um quilo de batatas ou uma garrafa de cerveja, num supermercado, paga o ICMS, um tributo estadual, pelo ato da compra. Outros impostos podem ter sido cobrados em outras etapas, incidindo, por exemplo, sobre a produção industrial. Mas um tributo como a CPMF incide sobre o ato de pagar.

O contribuinte, nesse caso, paga um imposto pela compra, um elo da circulação da mercadoria, e em seguida tem de pagar um tributo sobre o ato do pagamento, isto é, sobre a mera liquidação de um negócio já tributado. O ICMS, é importante lembrar, já estará incluído na base de cálculo da CPMF. Se essa pessoa, no dia seguinte, enviar um dinheirinho à mãe, para ajudá-la a sobreviver em algum lugar longínquo, pagará o imposto sobre o valor remetido. Não há diferença entre essa remessa e a revenda, com lucro, de um lote de ações numa bolsa de valores.

Assim era cobrada a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira, extinta em 2007. Petistas tentaram ressuscitá-la, assim como o atual ministro da Economia, Paulo Guedes, mas nunca houve, até agora, suficiente apoio político ou técnico a esse tipo de iniciativa. Empresários tentarão mudar esse jogo, para compensar de forma aberrante uma possível desoneração da folha de salários. Mas a mera desoneração é um objetivo limitado. Pode-se alcançar muito mais com uma reforma ampla do sistema tributário. Com uma reforma bem desenhada, o sistema pode tornar-se mais funcional e mais equitativo, tornando o País mais eficiente, mais competitivo e socialmente mais justo.

Empresários interessados nesses objetivos deveriam, em primeiro lugar, conhecer e discutir propostas interessantes e tecnicamente bem fundadas – nenhuma delas proveniente do Executivo – já em andamento no Congresso e formuladas, pelo menos em parte, por gente especializada.

Se esses empresários, no entanto, estivessem realmente voltados para a modernização do Brasil, nunca tentariam enfraquecer as agências reguladoras. Ao sustentar essa bandeira, favorecem uma perigosa iniciativa do presidente Jair Bolsonaro, empenhado em transferir funções das agências para conselhos ministeriais, sujeitos a interferências políticas e a barganhas entre o Executivo e grupos parlamentares.

Além disso, esses empresários pensariam muito mais antes de propor qualquer emenda para limitar um suposto “ativismo judicial” em nome da preservação de medidas provisórias sobre liberdade econômica. A construção e a preservação de um saudável ambiente de negócios dependem de muitos fatores, como a solidez das instituições democráticas, a segurança jurídica, o funcionamento de um mercado sujeito a normas civilizadas, a adoção de impostos funcionais e equitativos e a contenção de impulsos autocráticos de qualquer mandatário. Não se alcançará nenhuma dessas condições apoiando o intervencionismo bolsonariano, tão aberrante numa democracia quanto a CPMF num sistema tributário moderno.