O Estado de S. Paulo, n. 46862, 05/02/2022. Política, p. A10

Parlamentares ignoram determinação do STF por transparência nas emendas

Breno Pires
André Shalders


 

A menos de um ano das eleições, deputados e senadores continuam a desrespeitar as determinações do Supremo Tribunal Federal sobre os critérios de transparência que devem ser adotados no repasse de verbas públicas e promovem nova farra bilionária com recursos do orçamento secreto. Entre 13 e 31 de dezembro, o relator-geral do Orçamento, senador Márcio Bittar (PSL-AC), registrou no site do Congresso indicações no valor de R$ 4,3 bilhões, mas os nomes dos congressistas que apadrinharam os pedidos foram ocultados em 48% dos repasses.

No fim do ano passado, o Congresso aprovou o Orçamento da União para 2022, que prevê R$ 16,5 bilhões de emendas de relator, o chamado orçamento secreto, para deputados e senadores. Na tentativa de evitar que os responsáveis pelas transferências aparecessem, Bittar relacionou prefeitos, vereadores, representantes de entidades sem fins lucrativos e até pessoas que não têm cargo público como autores de quase metade das indicações. No papel, eles são autores de pedidos que somam pouco mais de R$ 2 bilhões, aprovados pelo relator-geral. Os políticos que endossaram os repasses, no entanto, tiveram os nomes preservados.

Um dos solicitantes é o advogado Gustavo Ferreira, candidato derrotado a vereador, no interior de Minas Gerais, que afirmou ter tentado arranjar recursos para seu município, Antônio Carlos. Questionado pelo Estadão, Ferreira – que disputou a eleição de 2020 pelo Patriota – disse ter enviado um e-mail para o Senado e falado com alguns parlamentares, mas não respondeu quais.

Também em Minas, um morador de Papagaios pediu recursos para a área da saúde do município. Ricardo Correia da Silva é empresário e nunca concorreu em eleição. Outro cidadão que se apresenta como presidente do diretório municipal do Podemos de Jequitinhonha (MG) levou R$ 300 mil. Além deles, a presidente da Associação Brasileira dos Criadores do Cavalo de Passeio e Esporte, Vera Lúcia Baccin, pediu R$ 1 milhão. A associação está sediada na Bahia.

A análise do Estadão foi feita em um conjunto de 3.350 documentos, disponíveis no site do Congresso, com cerca de 6 mil indicações de repasses. Como o material entrou na rede de maneira desordenada, foi preciso juntar 34 planilhas não padronizadas e buscar, manualmente, os nomes dos solicitantes presentes, em ofícios que somam 3.282 páginas, para inseri-los um a um.

Centrão. O saldo mostra que o principal beneficiado, com R$ 616 milhões, foi o Progressistas, partido do Centrão que abriga o presidente da Câmara, Arthur Lira (AL), e o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira. Em seguida, o PSL, sigla do relator-geral do Orçamento, Márcio Bittar, teve R$ 555 milhões. O terceiro lugar ficou com o PSD, legenda do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (MG), com R$ 438 milhões.

O Estado mais favorecido foi justamente o que elegeu Pacheco: Minas, com R$ 553 milhões. O nome do senador, porém, não consta nos documentos, apesar da influência exercida por ele sobre os recursos como presidente da Casa. Já as indicações de prefeitos, vereadores, secretários municipais e estaduais, além de representantes da sociedade civil, em Minas, chegaram a R$ 250 milhões, sem qualquer padrinho informado. Arthur Lira, por exemplo, só apareceu em um pedido, de R$ 950 mil, para um município alagoano.

Durante a crise instalada no Congresso com a decisão do Supremo de barrar a execução do orçamento secreto, em novembro, Pacheco defendeu a boa-fé do Legislativo em dar mais transparência ao processo. "A má-fé não pode ser presumida", afirmou o presidente do Senado ao protagonizar a ofensiva que tinha como meta o recuo da ministra Rosa Weber, responsável pela liminar.

Outros políticos que não apareceram nos documentos foram o ex-presidente do Senado Davi Alcolumbre (DEM-AP) e o líder do governo no Congresso, Eduardo Gomes (MDB-TO). Mesmo assim, os Estados de Alcolumbre e Gomes acabaram sendo contemplados por meio de solicitações de prefeitos e representantes da sociedade.

A falta de transparência também ficou nítida quando pedidos de repasse tornados públicos por Bittar (R$ 4,3 bilhões) terminaram aquém dos R$ 6,6 bilhões das emendas de relator-geral, empenhadas no mesmo período, entre 13 e 31 de dezembro. Isso quer dizer que ou o relator-geral não divulgou todos os pedidos que recebeu ou a verba foi direcionada pelo Executivo da forma como bem quis, contrariando o discurso do presidente Jair Bolsonaro de que quem manda nesses recursos é o Congresso.

Farra. O deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ) escolheu até a empresa que deveria fornecer um ônibus. Estipulou também o valor de R$ 362.200 para cada uma das três unidades que indicou para o município de Itaguaí, no Rio: um modelo ORE 1 (4x4), de 29 lugares. "Eu realmente pedi os ônibus, mas não conheço a empresa e não tenho contato algum. O FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) foi quem mandou a informação para colocar o nome da empresa no ofício e a minha chefe de gabinete copiou e colou. Lamento terem colocado", disse Sóstenes ao Estadão.

O prefeito de Vitória do Jari (AP), Ary Duarte da Costa, do mesmo partido de Alcolumbre, pediu e obteve o empenho de R$ 3,8 milhões para construir um estádio de futebol. Argumentou em poucas linhas a sua necessidade: "Possuímos em nosso município um Estádio Municipal que já foi palco de vários campeonatos e torneios de futebol, mas, infelizmente, com o passar dos anos, foi sendo destruído pela ação do tempo e por depredação, ainda assim é utilizado para algumas práticas esportivas".

São poucos os casos nos quais aqueles que não são parlamentares informam os padrinhos por trás das indicações. Ao pedir ao relator-geral R$ 1,7 milhão para ações em São Miguel dos Campos (AL), a secretária municipal de Saúde, Adeline de Carvalho Silva, escreveu: "Estamos solicitando à Vossa Excelência, através do gabinete do deputado Severino Pessoa".

Enquanto isso, falta dinheiro para que órgãos federais planejem ações. Robson Pereira da Silva, superintendente regional do Incra no Distrito Federal e Entorno, pediu recursos da ordem de R$ 205 mil para ações relacionadas à regularização fundiária. Já Mauro Rodrigues Bastos, superintendente da Funasa no Pará, solicitou R$ 1 milhão para instalação de três microssistemas de abastecimento de água. "O pleito acima justifica-se para que seja levado o abastecimento de água a diversas comunidades ribeirinhas e bairros aonde não chega água potável e nem saneamento", sustentou Bastos.

'Captura'. Para a professora Elida Graziani Pinto, da FGV em São Paulo, os dados causam preocupação. "É indício de grave irregularidade o descumprimento de determinação do STF e de regulamentação do próprio Congresso sobre a necessidade da mais ampla transparência para as emendas de relator", constatou ela. "Tal opacidade recalcitrante, às vésperas das eleições, demonstra a captura do orçamento público para atender tão somente ao curto prazo os que almejam se reeleger a qualquer custo, ainda que implodindo o ordenamento jurídico brasileiro." 

Análise

'Estadão' analisou 3.350 documentos com cerca de 6 mil indicações de repasses

Indicações por cargo

R$ 1,9 bi

Deputado federal

R$ 1,53 bi

Prefeito

R$ 362,2 mi

Senador

R$ 264,7 mi

Secretário estadual

R$ 91,9 mi

Representante da sociedade civil

R$ 55 mi

Governador

R$ 40,7 mi

Responsável por indicação não identificado

R$ 36,9 mi

Secretário municipal

R$ 27 mi

Ministro de Estado

R$ 16,4 mi

Vereador

R$ 15,7 mi

Prefeito em exercício

R$ 1,9 mi

Vice-prefeito

R$ 1,2 mi

Superintendente em órgão federal

R$ 1,2 mi

Gestor de Fundo Municipal de Saúde

R$ 650 mil

Sem cargo público