O Globo, n. 31466, 01/10/2019. País, p. 6

'Criamos vários ministérios públicos paralelos'

Entrevista: Augusto Aras


O novo procurador-geral da República, Augusto Aras, defendeu ontem, em entrevista ao GLOBO, um “tratamento mais rigoroso” a acordos de delação premiada. Para preservar a credibilidade desse instrumento, ressaltou que as colaborações não podem ser usadas por delatores como formas de cometimento de novos crimes e até de “vingança” contra desafetos.

Aras afirmou que pretende criar um órgão colegiado para unificar a coordenação de todas as forças-tarefas de investigações pelo Brasil, como a da Lava-Jato de Curitiba — criticada pelo procurador por ter se tornado “personalista” e ter demonstrado um “projeto de poder”.

O número de delações premiadas caiu muito na gestão de sua antecessora. Como o senhor vê o instituto?

Nós precisamos dar às delações premiadas um tratamento mais rigoroso para que não percam a sua credibilidade. Porque, embora não seja prova — ela apenas contribui para que se faça prova —, exige-se da delação premiada que o delator apresente provas idôneas dos fatos. O certo é que as delações, num primeiro momento, não só maculam bens, como a violação da imagem pública dos delatados, até às vezes por vingança, como podem importar em outros ilícitos praticados pelos delatores contra terceiros. Então nós temos que pensar num manual de boas práticas para as delações e evitar que sirvam aos interesses escusos e permitir que atinjam seu fim, que é contribuir para a elucidação dos fatos.

Como vai ser construído esse manual?

Nós vamos constituir uma comissão de procuradores, com conhecimento das delações, para estabelecermos as boas práticas.

Haverá integrantes da força-tarefa de Curitiba?

Provavelmente, mas nós estamos pensando muito mais além da força-tarefa. O Brasil não é feito só de uma força-tarefa. Nós temos uma dezena de forças-tarefas em curso em todo o Brasil, talvez uma centena em todos os MPs (Ministérios Públicos) estaduais, e nós precisamos compartilhar essas informações, essas práticas, essas experiências. Com isso nós faremos através do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) um manual de boas práticas para delações, de maneira a não permitir que as delações se tornem um meio de cometimento de novos crimes. Mas isso não é ser contra a delação, é apenas a cautela que deve ter o Ministério Público.

Que tipo de cuidado o senhor defende?

Nós já superamos a casa de uma centena de delações premiadas. Todavia, apenas 20% delas resultaram em proveito específico para a acusação. É muito pouco. Só que, no universo dos 80% restantes, há várias violações. Violações aos direitos e garantias fundamentais de delatados, há em tese negociatas estabelecidas por delatores para se prevalecer materialmente em detrimento do sistema de justiça, e até denúncias de chantagens, extorsão de delatores contra delatados e até mesmo com espírito de vingança. Nós precisamos ter cautela para que o delator não se torne beneficiário de sua própria delação, sem que haja uma justa causa para que essa delação produza efeitos positivos.

O senhor considera que a estrutura da força-tarefa da Lava-Jato de Curitiba é adequada?

Nós temos já colegas subprocuradores-gerais da República estudando como aparelhar esse órgão que serve à Lava-Jato. Esse estudo não é só para a LavaJato. É para estruturar, organizar e otimizar os recursos orçamentários para todas as operações.

Mas então o senhor defende realocar a estrutura da força-tarefa de Curitiba?

É necessária a estruturação e a organização de um órgão colegiado dentro da PGR (Procuradoria-Geral da República) para gerir todas as forças-tarefas. Esse órgão vai compartilhar os recursos orçamentários, compartilhar informações.

Seria um órgão novo?

Deve ser dentro da câmara criminal. Não podemos repetir os equívocos cometidos antes. Ou seja, quando permitimos que houvesse várias operações sedimentadas, criamos vários MPs paralelos. Vamos otimizar o trabalho para que não falte dinheiro para a realização das operações.

Mas isso pode acarretar na diminuição da força-tarefa de Curitiba?

Curitiba é nosso case, nossa operação mãe. Lá tem toda estrutura. É possível que possamos trazer toda essa estrutura para Brasília, trabalhar em Brasília com todas as demais operações. Tudo integrado.

O senhor já disse que a Lava-Jato precisa de algumas correções. Quais são os erros que o senhor vê?

A Lava-Jato ficou personalizada. Esse personalismo gerou, como revela o (site) “The Intercept”, ainda que com contestações à sua idoneidade, projetos de poder estranhos ao MPF (Ministério Público Federal) e estranhos principalmente para quem tem o dever constitucional de não exercer atividade política.

O senhor vai votar pela abertura do procedimento disciplinar contra o procurador Deltan no CNMP?

Acho que não haverá oportunidade de eu, sendo presidente do CNMP no momento oportuno, ir a votar nesse caso. O doutor Alcides (Martins), que foi o PGR interino, deve voltar para apresentar o seu voto. Mesmo quando sai da presidência, essa tradição é respeitada.

O presidente Bolsonaro comparou o governo a um jogo de xadrez. Ele seria o rei, os ministros os peões e o PGR seria a dama. Sua atuação será alinhada ao governo?

Se nós usarmos essa metáfora para compreender o tabuleiro do xadrez como a nação e o presidente, e o procurador-geral da República o representante da sociedade em relação ao Estado, é fácil compreender a dimensão da importância que o presidente deu ao Ministério Público Federal e ao procurador-geral da República. Ou seja, o advogado da sociedade, do Estado, tem o dever de estar atento à Constituição desde o seu primeiro até o seu último artigo. Então o procurador-geral da República só pode ser entendido como o advogado da sociedade, em todos os seus aspectos, e por isso a metáfora da dama no xadrez é o contraponto que se faz entre o Estado e a sociedade.

O senhor já falou em rever medidas de Raquel Dodge, como nomeações. Mas em relação aos pareceres judiciais, já definiu qual posicionamento irá tomar?

Não. Os processos têm curso e têm as suas fases. Todos eles voltarão à PGR e ao voltar à PGR nós vamos reexaminar cada um deles. A depender do conteúdo, vamos ratificar ou não os entendimentos adotados pela eminente procuradora-geral da República que me antecedeu.

O pedido de federalização do caso Marielle (Franco), por exemplo, o senhor já teve uma chance de analisar?

Em concreto não, mas posso lhe dizer que a federalização, em tese, é sempre possível quando as autoridades estaduais não apresentam as condições necessárias para investigar a verdade real.

Como será a relação com procuradores de primeira instância? Teme que, por não ter sido eleito pela lista tríplice, eles façam ações para retaliar o governo ou senhor?

Existe a lei de abuso de autoridade, existe a nossa lei complementar 7.593, que coloca deveres e condutas ao membros do MPF. Não teremos dificuldade alguma de aplicá-las. Mas eu tenho confiança na grande maioria dos colegas de todas as instâncias, que esses colegas saberão se comportar dentro da Constituição e das leis. Não temo retaliação nenhuma.

Setores ligados ao MPF e ao Judiciário têm criticado pontos da lei de abuso de autoridade, descritos como genéricos e que seriam usados para punir quem atua de maneira regular.

Eventual norma penal dotada de tamanha generalidade que você sugere pode ser questionada na via de Ação Direta de Inconstitucionalidade. Se isso acontecer, nos manifestaremos no caso. Mas é importante confiar no próprio sistema de Justiça brasileiro. Se quem vai julgar o juiz que abusa é outro juiz, se quem vai julgar o procurador ou promotor é o outro colega, é preciso que tenhamos confiança no sistema. Temos que acreditar que a lei do abuso de autoridade não deve ter a força de restringir a atuação dos agentes públicos. O que pode ter nesse universo, e que já me perguntaram, é a possibilidade de corporativismo. O que eu respondo é que as diversas instâncias do Poder Judiciário, sejam as instâncias administrativas do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e CNMP, farão a fiscalização de um eventual corporativismo que proteja os membros de cada corporação. O sistema funciona como um meio de freios e contrapesos para evitar que haja abusos dentro do próprio ato de apurar os abusos.