O Globo, n. 31466, 01/10/2019. Economia, p. 17

Eike Batista é condenado a oito anos

Glauce Cavalcanti
Rennan Setti


O empresário Eike Batista foi condenado pela Justiça Federal do Rio a oito anos e sete meses de prisão pelos crimes de uso de informação privilegiada (insider trading )e manipulação de mercado em operações de venda irregular de ações da empresa do setor naval OSX em 2013. A sentença de primeira instância estabeleceu ainda o pagamento de mais de R$ 118 milhões em multas e reparação deda nos. Éa maior condenação até omo mentona esfera criminal por crimes contra o mercado de capitais no país, mas ainda cabe recurso.

Embora divulgada ontem, a decisão da juíza Rosália Monteiro Figueira, titular da 3ª Vara Federal Criminal do Rio, data de 24 de setembro. No mesmo dia, o Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional (CRSFN), conhecido como “Conselhinho”, absolveu Eike do pagamento de multa de R$ 21,3 milhões imposta pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que regula o mercado de capitais, em 2017 pelo mesmo caso.

A ação penal que tem Eike como réu trata da venda de ações da OSX — fundada por ele — em 19 de abril de 2013. Coma operação, o empresário evitou uma perda de R$ 10,5 milhões. Isso porque ele vendeu ações menos de um mês antes de a empresa comunicar ao mercado a alteração de seu plano de negócios e das adversidades enfrentadas por outras empresas do Grupo X. Dessa forma, a Justiça entendeu que ele agiu de posse de uma informação que os outros acionistas, que tiveram perdas, não tinham.

Eike “recebeu com perplexidade a notícia ”, disse Fernando Martins, advogado do empresário, argumentando que a decisão vai na direção contrária da tomada pelo Conselhinho na semana passada:

— Vamos recorrer da decisão, que contraria o que ficou decidido pelo órgão máximo na esfera administrativa. O Conselhinho reconheceu que Eike vendeu as ações da OSX para atender requisitos do mercado de capitais, que é a base na nossa argumentação. São penas de reclusão e multas extremamente altas.

Defesa critica decisão

Darwin Corrêa, advogado de defesa do empresário no âmbito dos processos administrativos, avalia que a sentença criminal demonstra “profundo desconhecimento da matéria de mercado de capitais”. Ele disse acreditar que a decisão do Conselhinho terá “grande peso” na decisão final da Justiça Federal em relação aos recursos:

—Essa ação que gerou condenação pela 3ª Vara é exatamente a mesma da qual o Conselhinho absolveu Eike semana passada com respeito à acusação de insider trading. Mas o MPF fez uma acusação adicional de manipulação de mercado que sequer a CVM fez. A expectativa de anulara condenação é grande.

A reclusão de oi toanos e sete meses deve ser cumprida inicialmente em regime fechado. Alei estabelece que condenações superiores a quatro anos não podem ser substituídas por uma pena alternativa restritiva de direito ou sofrer suspensão condicional. Pena que não exceda a oi toanos permite cumprimento em regime semiaberto. Acima disso, o condenado deve começara cumprirem regime fechado.

No único processo de insider com decisão final da Justiça, o caso Sadia, as penas de reclusão, que eram inferiores a quatro anos, foram convertidas em serviçosà comunidade. Em 2017, Wesley Bat ista, da JBS, foi preso preventivamente e se tornou a primeira pessoa ate ri dopara a cadeia no país pelouprivilegiada. Acabou solto seis meses depois. O MPF já denunciou Wesley duas vezes pelo crime, mas ainda não houve condenação.

Outro caso foi o da Mundial, fabricante de tesouras e alicates. No fim de 2016, a Justiça Federal do Rio Grande do Sul condenou dois envolvidos a três anos enove meses de prisão. Um deles foi condenado a pagar multa de R$ 2,3 milhões. O caso ainda tramita.

Eike Batista já tem outra condenação em primeira instância, a 30 anos de prisão, por seu envolvimento no esquema de corrupção do ex-governador Sérgio Cabral. Ele também recorre da sentença do juiz Marcelo Brêtas, no âmbito da Operação Lava-Jato. Em agosto deste ano, Eikefoip reso temporariamente na operação Segredo de Midas, em mais uma fase Lava-Jato, por suposta manipulação de mercado. A primeira prisão temporária dele ocorreu em 2017.

—É a primeira vez que temos um caso de alguém inocentadona esfera condenadona esfera criminal, embora não tenha havido ainda tramitação em julgado — disse Viviane Muller Prado, professora da FGV-SP e estudiosa de crimes contra o mercado. —Até hoje, a esfera administrativa sempre foi muito mais atuante que a criminal nesses casos. Porrazões que desconhecemos, poucos casos chegam à Justiça, apenas os mais midiáticos.

O ex-bilionário é réu ainda em outras duas ações penais propostas pelo Ministério Público Federal, ambas por crimes relativos ao mercado de capitais cometidos em negociações envolvendo empresas do Grupo X.

Pelo crime de insider trading, a titular da 3ª Vara Federal Criminal do Rio determinou reclusão de quatro anos, além do pagamento de multa equivalente a três vezes o valor ilícito obtido com a venda das ações da OSX. O montante, corrigido a presente, foi fixado em R$ 31,51 milhões.

Pelo crime de manipulação de mercado, ela fixou a pena em quatro anos e sete meses de reclusão, além do pagamento de R$ 4,19 milhões em 280 dias-multa de 15 salários mínimos. Entra ainda na sentença o pagamento de R$ 82,8 milhões em reparação a prejuízos causados ao mercado, a serem pagos ao Conselho Monetário Nacional.

Especialistas ouvidos pelo GLOBO apontam inconsistências na decisão. Thiago Botino, professor da FGV Direito Rio, avalia que as penas de prisão e multa são muito altas:

—Botar a multa em três vezes o valor da vantagem (ilícita obtida) significa que ela deu a pena máxima para um réu primário, sem antecedentes, com argumentos retóricos frágeis —diz o especialista. — Depois, a lei fala que, no crime de manipulação, também são até três vezes o valor da vantagem, mas ela aplica dias-multa, que poderia ser de até cinco salários mínimos. Ela colocou 15.

Dupla punição

Por outro lado, Heloisa Estellita, professora de Direito Penal da FGV Direito-SP, sustenta que este valor pode ser triplicado “se o juiz considerar que, em virtude da situação econômica do réu, é ineficaz, embora aplicada no máximo ”, conforme explicadona sentença. Ela também vê, porém, um “defeito grave” na decisão, que deverá ser corrigido na segunda instância:

— A dosimetria da pena levou em conta fatores que implicam dupla punição pelo mesmo fato. Por exemplo: levou em conta na fixação da pena que o acusado teria operado à margem das normas de mercado. Isso já é um pressuposto da própria prática criminosa e não pode ser considerado duas vezes.

Minoritários comemoram

Para Rodrigo Rocha, sócio do escritório Dannemann Siemsen, a definição da multa aplicada é também influenciada pela situação e perfil do réu:

— Quando a juíza escolhe aplicar a multa máxima de três vezes o valor do ganho ilícito, mesmo em caso de réu primário, há um juízo de valor da situação como um todo. Eike não é alvo de apenas esta ação. Isso permite usar a penalidade máxima, como ocorreu com os R$ 31,5 milhões.

Na avaliação de uma fonte do alto escalão da CVM, o Conselhinho errou ao absolver Eike, e a sentença judicial representa um precedente importante, já que o Judiciário “tem poucas manifestações sobre esses ilícitos.”

— É uma vitória da associação, um passo na direção da moralização do mercado de capitais brasileiro. Mas temos que melhorar a legislação e criar mecanismos de ressarcimento automático para acionistas lesados — diz Aurélio Valporto, vice-presidente da Associação dos Investidores Minoritários (Admin), que atuou como assistente de acusação na ação.

“Até hoje, a esfera administrativa sempre foi muito mais atuante que a criminal nesses casos. Poucos casos chegam à Justiça, apenas os mais midiáticos”

Viviane Muller Prado, professora de Direito da FGV-SP

“Nós vamos recorrer da decisão, que contraria o que ficou decidido na esfera administrativa. São penas de reclusão e multas extremamente altas”

Fernando Martins, advogado de Eike Batista

Os problemas do ex-bilionário

1 Império X ruiu com simbiose entre as companhias

Do posto de homem mais rico do país à prisão, Eike Batista protagonizou uma sucessão de erros, como a combinação de alta diversificação de negócios — tinha de porto a hotel — com forte interdependência entre as principais empresas. Falhas operacionais da petroleira OGX geraram um efeito dominó no Grupo X. A OSX, que produzia plataformas para a OGX, foi uma das mais prejudicadas.

2 Comunicação com o mercado gerou investigações da CVM

Eike transbordava para a comunicação com o mercado seu excesso de otimismo. Promovia executivos que traçavam as previsões mais positivas, ainda que irreais, que divulgava até nas redes sociais. Acabou no alvo da CVM. Em maio, recebeu a maior penalidade individual já aplicada pela autarquia: multa de R$ 536,5 milhões e banimento de administrar empresas de capital aberto por sete anos.

3 Relações com políticos o levaram à prisão na Lava-Jato

As relações suspeitas de Eike com políticos acusados de corrupção em desdobramentos da Operação Lava-Jato, como o ex-governador do Rio Sérgio Cabral, acabaram em acusações de pagamentos de propinas e manipulação de mercado que levaram o ex-bilionário para trás das grades. Ele foi preso preventivamente duas vezes, em 2017 e 2019. Teve imóveis vasculhados pela PF e bens apreendidos.

4 Empresário já foi condenado a 30 anos por corrupção ativa

Em decisão de primeira instância, o juiz Marcelo Brêtas, da 7ª Vara Federal do Rio, condenou Eike a 30 anos de prisão por corrupção ativa. Ele recorre. Eike enfrenta outro processo relacionado ao esquema de lavagem de dinheiro de Cabral. Foi o que levou o empresário novamente à prisão em agosto deste ano, por três dias. A Justiça também bloqueou R$ 1,6 bilhão de Eike e de seus dois filhos.