Título: Depósitos de crianças pobres
Autor: Hugo Marques
Fonte: Jornal do Brasil, 14/04/2005, País, p. A5

BRASÍLIA - Depósitos de crianças - a maioria negros e pobres - sem convivência com as famílias ou com a comunidade do município. Assim pode ser resumido o perfil dos ''abrigos'' infantis no Brasil, que acolhem cerca de 80 mil crianças. É o que mostra a mais extensa pesquisa sobre o tema, feita pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Ministério da Fazenda, a pedido da Secretaria Especial de Direitos Humanos, da Presidência da República.

A distorção do papel dos abrigos ficou constatada na investigação sobre 589 instituições públicas e privadas, onde estão recolhidas 19.373 crianças e que recebem dinheiro do governo federal. A pesquisa não abordou instituições como Febem, onde adolescentes cumprem medidas sócio-educativas. O levantamento mostrou que só 5,8% dos abrigos preservam os vínculos familiares, incentivando convivência com parentes e recolhendo, de forma conjunta, os irmãos desabrigados. Do total de crianças abrigadas, 63% são negros.

- A pesquisa é muito chocante - diz o secretário Nacional de Direitos Humanos, ministro Nilmário Miranda.

Ele admite que existe uma grave distorção no papel dos abrigos. A pesquisa, diz Nilmário, é o primeiro passo do governo para mudar esta realidade injusta. Até hoje chamados de ''orfanatos'' - palavra considerada politicamente incorreta - os abrigos são realmente depósitos de órfãos de pai, mãe e sociedade civil. Os dados mostram que somente 14,1% dos abrigos respeitam os critérios de reestruturação familiar, como visitas aos domicílios, acompanhamento social e encaminhamento para programas de inserção.

O Estatuto da Criança e do Adolescente manda que os abrigos tenham estruturas semelhantes a uma residência, mas só 8% cumprem este dispositivo e apenas 6,6% dos abrigos incentivam a participação na vida comunitária.

Durante a divulgação da pesquisa, o governo federal anunciou que vem tomando uma série de medidas para tentar reverter o problema. Uma das principais medidas é o apoio à criação de conselhos tutelares em todos os municípios. Uma orientação será a devolução de crianças carentes às famílias.

- O primeiro passo é identificar o problema, para direcionar as políticas públicas - diz Nilmário.

A pesquisa é um puxão de orelhas nos juízes. O Judiciário, segundo a pesquisa, ''segue incapaz de alterar a situação de inúmeras crianças que vivem parte significativa de suas vidas em instituições de abrigo, privados do direito à convivência familiar''.

Os abrigos seguem a linha do assistencialismo religioso. 68,3% estão na esfera não-governamental, com ''significativa'' influência religiosa, entre os quais há predomínio da orientação católica em 62,1%, seguidas de 22,5% evangélicos e 12,6% espíritas.

A pobreza, que não deveria ser motivo de recolhimento, é um dos principais motivos que levaram à reclusão das crianças, com 24,1% dos casos. Os outros principais motivos de recolhimento são o abandono (18,8%), seguido da violência doméstica, dependência química dos responsáveis.

A maioria das crianças (61,3%) tem entre 7 e 15 anos. Outro problema grave é o tempo de permanência nestas instituições. Os processos de adoção no Brasil duram mais de três anos, alguns chegando a 5 anos, período em que a criança cresce dentro de um abrigo e perde a grande chance de conviver com uma nova família.

- É necessário regular a entrada destas instituições. A carência não é motivo para a exclusão da família - diz a pesquisadora que coordenou o trabalho, Enid Rocha.

Ela lembra que 87% das crianças têm famílias e 58,2% mantêm ''vínculo'' familiar. O que mais dificulta a convivência familiar é o fato de apenas 10,7% as crianças estar judicialmente em condições de ser encaminhado para a adoção. ''A grande maioria das crianças vive a paradoxal situação de estar juridicamente vinculada a uma família que, na prática, já abriu mão da responsabilidade de cuidar deles'', conclui a pesquisa.

O custo médio de cada criança abrigada é de R$ 508 nas instituições públicas e de R$ 365,51 nas privadas.