O Globo, n. 31520, 24/11/2019. País, p. 12

O presidente e a bola, uma relação de amor e estratégia
Bernardo Mello


O presidente palmeirense Jair Bolsonaro veste a camisa, como diz a expressão popular, quando o assunto é futebol. E não só uma: empenhado em marcar presença em estádios e ao lado de jogadores, Bolsonaro já foi presenteado com 38 uniformes de clubes e seleções desde o início do mandato, segundo informações obtidas via Lei de Acesso à Informação. O vestuário do presidente tem espaço até para rivais como Santos, Internacional, Grêmio, Vasco e Flamengo, campeão da Taça Libertadores ontem com a sua torcida declarada. Bolsonaro, que entregou o troféu de campeão brasileiro ao Palmeiras em 2018, se rendeu ao bom momento rubro-negro neste ano. No início do mês, presenteou o presidente da China, Xi Jinping, com um agasalho do Flamengo e chegou a anunciar que iria à final da Libertadores, mas desistiu dos planos. Já o governador do Rio, Wilson Witzel, hoje desafeto de Bolsonaro, esteve nas tribunas do Estádio Monumental de Lima. Witzel declarou ser torcedor do Corinthians na campanha eleitoral, mas tem frequentado estádios com uniforme do Flamengo.

O clube carioca informou que não fez convites oficiais a nenhuma autoridade. Witzel se juntou na viagem à comitiva da Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), que escolheu o Maracanã como sede da final da Libertadores em 2020. Para o sociólogo da FGV Bernardo Buarque de Hollanda, pesquisador do futebol e das torcidas organizadas, a ida de Bolsonaro a outra partida do Flamengo, contra o CSA de Alagoas, em junho, deixou explícita a estratégia política associada ao esporte.

O presidente apareceu nas tribunas do Estádio Mané Garrincha, em Brasília, ao lado do ministro da Justiça, Sergio Moro, com imagem abalada à época por conta dos vazamentos de conversas privadas com integrantes da Lava-Jato. Na ocasião, Bolsonaro e Moro vestiram camisas do Flamengo atiradas por um grupo em um setor próximo.

— Há um movimento do Bolsonaro para tentar reforçar a imagem como um homem “do povo”, que tem gostos comuns. E as idas a estádios têm também um cálculo estratégico, de uma reserva de popularidade, no início do mandato, que pode ser explorada e associada ao futebol —avalia Buarque.

O contato com os torcedores também teve momentos tensos. Na final da Copa América, vencida pelo Brasil no Maracanã, Bolsonaro ouviu vaias e aplausos ao entrar no gramado para participar da premiação. Na última semana, quando o presidente palmeirense anunciou sua presença na Vila Belmiro para o jogo entre Santos e São Paulo, uma torcida organizada santista criticou o uso do estádio como “palanque político” para Bolsonaro.

Em outro clássico paulista, entre Palmeiras e Corinthians, em agosto, um torcedor foi retirado do estádio após xingar o presidente. Construída para a Copa do Mundo de 2014, a Arena Corinthians se tornou um dos símbolos da paixão clubística do ex-presidente Lula. Alvo posteriormente da Operação Lava-Jato — assim como as reformas do Maracanã e do Estádio Mané Garrincha —, a obra recebeu empréstimo da Caixa Econômica Federal e do BNDES e contou com articulação direta de Lula, segundo declarações do empresário Marcelo Odebrecht, em delação premiada, e do presidente do Corinthians, Andrés Sanchez.

GANHO RELATIVO

Livia Magalhães, historiadora da UFF com pesquisas sobre o uso político do futebol por regimes sul-americanos, lembra que a associação a seleções nacionais foi um expediente comum nas ditaduras brasileira e argentina. O general Emílio Garrastazu Médici é lembrado por sua presença constante ao lado da seleção tricampeã do mundo em 1970, assim como o argentino Jorge Videla durante a Copa do Mundo de 1978, conquistada pela Argentina em casa. Videla, que não era fanático por futebol, justificava o apoio à seleção afirmando que estava “representando a nação”.

— É um comportamento mais comum em relação a seleções, e não com clubes. O presidente argentino Mauricio Macri, por exemplo, que construiu sua popularidade como dirigente do Boca Juniors, se afastou depois desse papel de torcedor. No Brasil, por outro lado, vivemos um momento em que os governantes têm uma aproximação clubística mais explícita — compara Livia Magalhães. Para o sociólogo Ronaldo Helal, os ganhos dessa estratégia são relativos:

— Não vejo prejuízo à imagem do Bolsonaro com as aparições em estádios. Mas eu me surpreenderia se ele tivesse algum ganho de popularidade com o futebol.