Título: Oficialização do jogo
Autor: D. Eugenio Sales
Fonte: Jornal do Brasil, 02/04/2005, Outras Opiniões, p. A19
Trata-se de uma inversão funesta de valores, com efeitos colaterais imprevisíveis
Alguns temas retornam periodicamente ao cenário nacional, graças às facilidades com que os meios de comunicação social fazem surgir do esquecimento, da escuridão à luz. Há poucas semanas, veio à tona na Câmara Federal o projeto da liberalização da jogatina. Aos interesses de uma pequena minoria sacrifica-se o bem-estar da coletividade. O mesmo se diga dos entorpecentes. Aliás, anos atrás, uma autoridade no assunto escreveu uma matéria sob o título ''O mito da descriminação das drogas: vários dos defensores da descriminação estão, muitas vezes, entre os usuários''. O mesmo se pode afirmar quando se retorna à questão da liberalização dos jogos de azar.
O esforço pela oficialização da jogatina mereceria francos aplausos se orientado em favor de uma causa nobre, digna, o que não ocorre. O jogo foi proibido a 10 de abril de 1944 pelo Decreto-Lei nº 9.215 do presidente Eurico Gaspar Dutra. Essa legislação periodicamente ressurge, porém junto com argumentos enganosos: a oficialização traria consigo a moralização, promoveria o turismo, a criação de empregos, além de benefícios sociais.
Graças a Deus, as inúmeras tentativas de dar foros de ''cidadania'' à jogatina têm fracassado, até o momento em que redijo estas linhas. Qualquer concessão ao vício é um contra-senso. Parece-me oportuno recordar Rui Barbosa: ''De todas as desgraças que penetram no homem pela algibeira e arruínam o caráter pela fortuna, a mais grave é, sem dúvida, essa: o jogo''! A ineficácia do combate a esse mal é transformada em argumento em favor da legalização do mesmo. A ser verdadeiro esse raciocínio, todo o Código Penal deveria ser suprimido, pois nossos cárceres estão cheios dos que o infringem.
Ninguém de bom senso pode argumentar apelando para que recursos provenientes do jogo, sejam aplicados nas obras sociais, pois se trata de fator de degenerescência social. Esse vício nos leva a questões patológicas comparáveis à dependência dos tóxicos. Em 1957 foi criada em Los Angeles, Estados Unidos, uma organização com o objetivo de dar apoio aos que lutam contra a dependência dos jogos de azar, nos moldes do AA (Alcoólatras Anônimos). Centenas de unidades estão difundidas nos Estados Unidos, Austrália, Nova Zelândia, Grã-Bretanha e outros. Ninguém de bom senso usará desse argumento: o vício como fator de progresso. Trata-se de um problema de ordem moral e social.
Jamais se corrige o mal autorizando-o por ser difícil impedi-lo. A restauração do tecido social apenas é possível com elementos que moldem o caráter dos indivíduos e corrijam suas atitudes prejudiciais à sociedade, na qual estão inseridos. Assim a jogatina, tentativa de enriquecer ou ter meios de sobreviver sem trabalhar, só será vencida por uma profunda modificação resultante de princípios morais.
A oficialização do jogo trata-se de uma inversão funesta de valores, com efeitos colaterais imprevisíveis. E no momento em que se transforma o contraventor em funcionário público ou assalariado, com carteira assinada, para controle dos lucros, outros expedientes surgirão para evitar a perda da imensa massa financeira que enriquece uns poucos. E o tóxico aí está como opção. O mais triste não é tanto a existência dos danos, mas o reconhecimento da incapacidade de combatê-lo.
Muita ingenuidade revela quem acredita que o mal deixa de sê-lo por mero decreto ou supressão de um artigo na legislação vigente. Fácil prever as conseqüências para os indivíduos e a sociedade, se determinados crimes fossem riscados do Código Penal, pela resistência em superá-los. No mínimo seria um atestado de incapacidade que viria estimular transgressões em outros campos.
O jogo-vício, o jogo imoral, que se identifica com o que chamamos de jogatina, traz em si o sinete da trapaça e o rastro da destruição de lares, de reputações e outros desastres. Não me refiro ao jogo - distração em que predomina a característica lúdica pois o objetivo não é a exploração da credibilidade pública ou o incentivo ao desejo malsão de ganhar sem trabalhar nem a nefasta troca de trabalho honesto pelo dinheiro oriundo da sorte. Estes aspectos é que são perniciosos. Nesta perspectiva, pessoalmente preocupo-me também com o emprego no social e ocasional mesmo de resultados financeiros de sorteios.
O fato de haver loterias não torna legítima a crescente multiplicação do jogo. Quanto maior seu número e o das loterias, mais amplas as possibilidades da difusão de seus malefícios.
Tempos atrás, ouvi o seguinte comentário: no Rio, nos locais onde funciona o chamado ''jogo do bicho'', nas suas imediações, há segurança. E a mim interpelaram se era de meu conhecimento um único assalto a esses lugares e aos transportadores de elevadas somas ali recolhidas. Realmente, esse respeito é sintomático.
A propósito, li num artigo publicado em 1982, a seguinte citação de um especialista em criminologia: ''Todos os imprevistos econômicos, que mudam bruscamente a situação financeira das pessoas, encerram riscos e inadequada adaptação social. Isso não é somente verdadeiro com os transtornos que obrigam o indivíduo a reduzir seu padrão de vida e então renunciar a satisfazer certas necessidades, mas também aqueles atuantes no sentido oposto. A faculdade que têm os grandes prêmios de loteria de engendrar catástrofes morais ilustra claramente esta última verificação''. De uma relação de grandes ganhadores na loteria esportiva, chega-se à triste constatação, resumida nesta frase do acertador do teste 24, cujo nome omito: ''A pior coisa que me aconteceu na vida foi ganhar na loteria''. Há um largo e doloroso elenco de pessoas bafejadas pela sorte, que ocuparam as atenções do País e, pelo que hoje padecem, comprovam o que se disse acima. Nem sempre o enriquecimento fácil e rápido gera a felicidade e o bem-estar.
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Ao agravar-se o estado de saúde do Santo Padre João Paulo II, um jornal de circulação nacional, na última sexta-feira, com manchetes abrindo todas as colunas da 1º página: ''Mundo faz vigília pelo Papa''. Creio firmemente que o Santo Padre em meio aos sofrimentos faz mais pela Igreja que em plena saúde. É necessário ver a Igreja com os olhos da Fé. Nestes momentos difíceis devemos ter a certeza de que o Espírito Santo dirige a obra de Cristo. Obrigado, Santo Padre, pelo seu exemplo de zelo pela integridade da doutrina e bem estar da Humanidade.