O Globo, n. 31468, 03/10/2019. Opinião, p. 3

Maconha faz bem?

Ascânio Seleme


O debate em torno do uso recreativo da maconha e dos seus efeitos terapêuticos sobre a saúde e o comportamento humano é tão antigo quanto polêmico no Brasil. Divide opiniões, como na política desses dias. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso carrega bandeira em favor da liberação da cannabis, defendendo uma mudança na sua classificação de risco junto a organismos internacionais. Mas FH sozinho, fora do Planalto, pode pouco. No novo velho Brasil de Jair Bolsonaro, nenhum milímetro se avançará nesse sentido. Ao contrário, o objetivo é endurecer mesmo com o consumidor.

A novidade no mundo é que agora, além da legalização do consumo, se quer que a maconha deixe de figurar como doping nas competições esportivas. Em maio, uma organização sem fins lucrativos que representa mais de cem ex-atletas profissionais, entre eles o boxeador Mike Tyson, encaminhou à Agência Mundial Antidoping uma petição para retirar a droga da lista de substâncias banidas do esporte. Os atletas dizem que a cannabis ajuda a relaxar.

Numa reportagem publicada esta semana no “Wall Street Journal”, um atleta amador, que usa regularmente maconha antes de se exercitar, diz que ela o “ajuda a sentir o sangue percorrendo cada músculo específico; o ápice da musculação é a conexão músculo e cabeça, a erva facilita muito esse processo”. A agência antidrogas afirma que o relaxamento muscular que a cannabis produz, ao reduzir dor e cansaço, oferece vantagem indevida ao competidor.

Onze estados americanos já liberaram o consumo da maconha. Em janeiro, Illinois passa a ser o décimo segundo. Em todo o território canadense, a sua utilização recreativa e terapêutica é permitida. Em Nevada e na Califórnia, o uso legal da maconha só pode ocorrer em locais fechados. Em Nevada, o estado que tem as políticas mais permissivas dos Estados Unidos, a polícia aborda usuário que estiver consumindo a droga em local público e recomenda que vá fumar em casa. Na Califórnia, o consumo é feito amplamente nas ruas e a polícia não se importa. Segundo apurou o “WSJ”, também se consome abertamente nas academias da costa oeste.

Cada vez mais o uso da maconha vem sendo associado a atividades esportivas. Os usuários defendem os benefícios estratégicos que a droga oferece, como a redução de tensão e ansiedade, além de contribuir para que o treinamento, muitas vezes solitário, não seja tão entediante. A agência afirma que seu uso também pode causar lesões, porque, ao aliviar a dor, um músculo pode estar sendo forçado sem que o atleta perceba. Pesquisadores da Universidade Harvard descobriram que o fumo eleva a taxa de batimentos do coração quando em repouso, o que pode representar risco para o atleta.

Segundo a reportagem do “WSJ”, uma série de torneios de jiu-jítsu, organizada por um certo High Rollerz BJJ, faz legal o uso da maconha, já que opera com regras próprias sem supervisão da agência antidoping. Os lutadores são obrigados a fumar do mesmo baseado minutos antes de entrar no ringue. O prêmio é um tijolo de maconha, e a plateia é encorajada a fumar durante a luta. O jiu-jítsu, como se sabe, é uma luta brasileira. A ideia extravagante faz, portanto, todo sentido.

Mesmo sem considerar essa brincadeira do jiu-jítsu, que também é inteiramente legal nos estados onde a droga é permitida, o fato é que a polícia cada vez se ocupa menos com maconheiros inofensivos. Fumar maconha não atrapalha ninguém. Nos estados legais, a droga é vendida em estabelecimentos credenciados e sanitizados. A guerra contra o traficante praticamente desapareceu nas cidades americanas. Combate pesado ao tráfico se dá apenas contra cartéis, normalmente fora do território americano.

A polícia passou a cuidar de assuntos que tratam diretamente da segurança dos cidadãos. Ficou mais eficiente. Imaginem esse quadro no Brasil. Pensem como seria o Rio se o uso da maconha fosse legal, e sua venda ocorresse em estabelecimentos comerciais na Joana Angélica, na Dias Ferreira, na Haddock Lobo. Imaginem um Rio sem bocas de fumo. Sem jovens descamisados protegendo essas bocas armados de fuzis.