O Globo, n. 31468, 03/10/2019. Opinião, p. 3

Os miseráveis

Ricardo Rangel


Em entrevista à “Veja”, Rodrigo Janot comparou Gilmar Mendes ao Inspetor Javert, personagem de “Os miseráveis”, de Victor Hugo, cuja obsessão é prender o criminoso Jean Valjean. No fim do romance, Valjean salva sua vida, e Javert, dilacerado entre o dever de cumprir a lei e a gratidão que o impede de fazê-lo, opta pelo suicídio.

 

Não ficou claro se Janot acredita que Gilmar é obcecado por cumprir a lei ou se supõe que é a gratidão que o leva a soltar tantos réus. Seja como for, incomodado com os comentários pouco airosos do ministro sobre sua filha — e descrente de que os dilemas éticos do Javert do Mato Grosso o levariam ao suicídio —, Janot deixou de lado as flechas, pôs na cinta uma pistola, e saiu de casa decidido a despachar Gilmar desta para melhor. Janot é como um Valjean ao revés: enquanto Valjean vai de vilão a herói, Janot, herói para tantos, tornou-se vilão.

Mesmo num país alucinado como o Brasil, é particularmente surreal a notícia de que um procurador-geral da República tenha se aproximado de um ministro do Supremo Tribunal Federal para assassiná-lo. E extraordinário que, dois anos depois de ter escapado desse desatino, venha a público contá-lo. A hipótese de a história ser mera bravata para ajudar nas vendas de um livro é provavelmente ainda mais espantosa: quem inventaria um despautério desses por motivo tão ignóbil?

Gilmar, num daqueles raros momentos em que obtém a concordância do público, recomendou “ajuda psiquiátrica”. Que Janot é (ou está) psicologicamente desequilibrado, não há dúvida. Mas o que é mais desequilibrado? A decisão de matar e morrer, o uso de uma tática desvairada para vender livros, ou não medir as consequências do que diz?

Por vezes acusado de assassinar reputações, o anti-Valjean das Alterosas cometeu um “suicídio de reputação”. O que leva alguém a, voluntariamente, destruir a própria biografia? Será a nostalgia dos tempos em que era diariamente assediado pela imprensa e bajulado pelos próceres da República? Acreditará que alguns dias, ou semanas, de volta à ribalta compensarão os anos de ignomínia que tem pela frente?

Estilhaços do tiro disparado por Janot contra o próprio peito se espalharam pela República. Ficou claro que, no que se refere à segurança, o padrão de qualidade do STF, que deixou um homem armado entrar no tribunal, é idêntico ao da FAB (que deixou um traficante de drogas entrar num avião da comitiva presidencial).

O STF — graças ao ministro Alexandre de Moraes, que determinou contra Janot medidas consideradas ilegais por advogados e pela Associação Nacional dos Procuradores da República — deu mais uma embaraçosa demonstração de patrimonialismo e de desrespeito às liberdades democráticas. Isso em um momento em que se discute abuso de autoridade no Judiciário.

O novo PGR, Augusto Aras, declarou que os erros de um único procurador não maculam o Ministério Público, mas silenciou sobre as medidas tomadas por Moraes — e perdeu uma chance de mostrar independência e de obter o respeito dos procuradores.

A tese de que os erros de Janot não maculam o MP, por sinal, é frágil, pois o ex-PGR foi eleito por seus pares. Como frágil ficou a tese dos procuradores de que a lista tríplice é o único critério adequado para a escolha do PGR: afinal, Janot esteve na lista três vezes, duas como primeiro colocado.

A liberação do porte de armas, tão cara a Bolsonaro, ficou ainda mais difícil de defender. Se um PGR, homem preparado e concursado, eleito pelos procuradores, indicado pelo presidente, sabatinado pelo Senado, não é uma pessoa qualificada para ter porte de arma, o que dizer do cidadão comum?