Título: O internacional pelo espírito
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Fonte: Jornal do Brasil, 03/04/2005, Especial, p. A7

João Paulo II buscou na história e na cultura as bases para a transformação política

Na política externa do século 20, João Paulo II tem o peso de um Franklin Roosevelt, um Ronald Reagan, um Winston Churchill, um Mikhail Gorbachev. Talvez mais. Filho de um sargento, o papa - o primeiro não italiano em 455 anos de Vaticano - nunca teve um Exército. As armas de Karol Wojtyla sempre foram a espiritualidade, a história, a cultura, a linguagem. A ação do pontífice no plano internacional é a prova mais clara de que estruturas materiais, por mais poderosas, não podem resistir à persistência do espírito. A cultura é a força fundamental das questões humanas, ao menos no longo prazo.

- Vocês não são o que eles dizem que vocês são - afirmou o papa na Polônia comunista, em junho de 1979, oito meses depois de eleito, na visita histórica de nove dias que fez à terra natal, algo que ''mudou o mundo'', como diria, mais tarde, um biógrafo.

- Deixe-me lembrá-los de quem vocês são.

Wojtyla aplicava a lição fundamental da história polonesa, que serviria de modelo paradigmático da ação internacional do Vaticano sob o comando do santo padre. Foi senão pela cultura, língua, religião e literatura que a nação ''Polônia'' sobreviveu enquanto o Estado foi praticamente obliterado da história da Europa por 123 anos de ocupação estrangeira depois das cisões de 1772, 1793 e 1795.

Quando o papa chegou a Varsóvia em 1979, novamente a Polônia está ocupada. Desta vez pelo comunismo soviético que tomou o lugar das atrocidades nazistas no território, cometidas depois da invasão de 1939 - o início da Segunda Guerra Mundial. Ninguém, muito menos Wojtyla, esqueceria de como Josef Stalin entregou a resistência polonesa às tropas alemãs. Depois de prometer ajuda, Moscou manteve o Exército vermelho parado até que os nazistas massacrassem as milícias locais. Enquanto isso, na Europa e nos Estados Unidos, muitos se perguntavam: não foi pela Polônia que entramos na guerra?

Ao restaurar no povo polonês a história e a cultura 'autêntica' da nação, afirma o biógrafo George Weisel, em um ensaio publicado pelo Foreign Policy Research Institute, na Filadélfia, João Paulo II criou uma revolução da consciência local, cujo fruto mais nobre foi a criação do movimento Solidariedade, de Lech Walesa, 14 meses depois que o santo padre esteve em casa novamente.

Foi uma repetição dos momentos de resistência cultural ao nazismo da adolescência de Wojtyla. Seja nas reuniões secretas na Universidade Jagiellonian ou na UNIA, um movimento de revitalização da sociedade civil polonesa do qual fazia parte o jovem Karol.

''Ao trazer de volta ao povo polonês uma sensação de liberdade e de coragem estranha ao mundo comunista, João Paulo II pôs em marcha uma dinâmica que levaria o mundo até a Revolução de 1989'', escreveu George Weisel.

Oito anos depois foi a vez do Chile. O papa chegou a Santiago em março de 1987 com o intuito declarado de lembrar os chilenos da cultura cristã do país, que vivia há 14 anos sob o regime Pinochet.

A estratégia da viagem foi decidida com os bispos chilenos. A escolha foi a de lembrar o país da vocação nacional pelo entendimento, no lugar da confrontação. Os sermões de João Paulo II foram lançados ao ar como pólen que viaja no vento. Sementes de espiritualidade que se transformam em árvores da resistência, cujo fruto não é outro senão político. Dezoito meses depois, um plebiscito nacional deu ao povo chileno a escolha entre o regime militar e a restauração da democracia.

O papa usou a mesma estratégia em Cuba, em janeiro de 1998 (como também na Argentina, em junho de 1982, em meio à Guerra das Malvinas). Com o povo cubano durante cinco dias, o pontífice não fez qualquer menção ao regime político da ilha. Em vez disso, mais uma vez Wojtyla procurou reler a história local pela ótica cristã, que distingue os cubanos na região colonizada, em boa parte, por britânicos e franceses.

João Paulo II lembrou da luta nacional cubana do século 19. Em Havana, como em Varsóvia, o santo padre buscou as palavras no sentido de liberar uma cultura e uma história 'autêntica'. Ao fazer isso, procurou, ao mesmo tempo, a reinserção de Cuba na história e no Hemisfério, pedindo aos cubanos que não se pusessem como vítimas - tema do discurso de boas-vindas de Fidel - mas como seres humanos protagonistas do próprio destino, versão cristã do iluminismo kantiano (o Aufklarung).

João Paulo II foi o papa mais influente na política internacional em séculos. Gerou efeitos sem utilizar dos mecanismos clássicos do campo, como o poder militar, a influência econômica ou mesmo a diplomacia, como negociação entre chefes de Estado. Em termos históricos, a abordagem cultural-espiritual da ação internacional de Wojtyla desafia as noções mais rasas de que a política ou a economia determina a história.

Com o fim da Guerra Fria, sobram os vazios que não foram preenchidos por João Paulo II. O Vaticano não tem hoje uma doutrina abrangente sobre a guerra. Temas como Estados párias, a preempção em face a uma ameaça nuclear ou mesmo o locus da autoridade na comunidade política internacional permanecem sem um posicionamento claro da Igreja. O mesmo ocorre com a ''intevervenção humanitária'', a qual o papa se mostrou sempre favorável mas sem detalhar como, quando e quem deve assumir tal responsabilidade. Temas de um outro tempo. Não mais o de Karol Wojtyla.