Título: Um papa que abriu o novo milênio
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 03/04/2005, Especial, p. A7

Um pontificado de mais de vinte e seis anos de duração, que se iniciou no dia 10 de outubro de 1981, não é fácil de avaliar. Nem sequer temos ainda a distância histórica necessária para olhar com serenidade a atuação de um Papa que imprimiu uma marca indelével no mundo. Por isso, selecionarei apenas alguns pontos mais salientes.

1. A geopolítica de João Paulo II - O primeiro ponto foi a sua atuação diplomática, em grande parte silenciosa, mas imensamente eficaz. Sem ruídos, sem gestos espetaculares, mas também sem forças armadas e sem conferências com grandes potências sentadas à mesa, sem apoio a grupos insurgentes ou a ações terroristas, sem derramamento de sangue, João Paulo conseguiu algo que parecia impossível: a queda da cortina de ferro e o reencontro dos povos da Europa. Como ele próprio falara repetidamente, era necessário que o velho continente voltasse a respirar com os dois pulmões, o ocidental e o oriental. A começar pela sua Polônia nativa, subjugada pelo regime comunista, o apoio do Papa foi decisivo para que os governos totalitários da Europa Oriental se retirassem do poder, sem guerras civis ou períodos de insegurança. Ninguém mais vê hoje qualquer perigo da conflagração generalizada que parecia tão próxima durante os anos da Guerra Fria.

Mas a ação política de João Paulo em favor da liberdade não se limitou ao continente europeu, mesmo que, em outras latitudes, os resultados não sejam tão tangíveis. Lembremos, porém, como exemplo, as suas intervenções no Líbano, na Terra Santa e, ultimamente, no Iraque. Nesse último caso, procurou todos os protagonistas, embora nem todos dessem ouvidos as suas palavras. O Papa polonês foi um verdadeiro lutador pela paz e a sua memória sempre será uma convocatória para a paz.

2. Um Papa teólogo - O segundo ponto que merece destaque é a ingente obra teológica que deixa atrás de si João Paulo II. As suas 14 encíclicas - desde a primeira, Redemptor Homins, até a mais recente, Ecclesia de Eucharistia - constituem um tratado completo de teologia, com uma ênfase especial na antropologia teológica e na responsabilidade social do cristão. Precisamente três dessas encíclicas - Laborem Exercens, Sollicitudo Rei Socialis e Centesimus annus - se referem às questões sociais, com posições bem avançadas e originais. Outras duas encíclicas - Veritatis Splendor e Fides et Ratio - mostram um pensamento extremamente original em questões de relacionamento com o mundo moderno e pós-moderno. São reflexões acerca do encontro entre a filosofia, a ciência e a fé. Se acrescentarmos ainda as 15 Exortações Apostólicas, especialmente as pós-sinodais, como a Familiaris Consortio ou a Pastores Dabo Vobis e algumas séries de discursos, como os dirigidos anualmente ao Tribunal da Rota Romana, ao corpo diplomático perante a Santa Sé, ou aos integrantes da Cúria Romana, teremos um conjunto gigantesco de documentos doutrinários como nunca antes um papa nos legou, nem sequer Leão XIII, apelidado de ''o papa das encíclicas''. Todos os âmbitos da cultura foram por ele percorridos; todos os temas da nossa atualidade, desenvolvidos; todos os problemas do nosso tempo, examinados.

Passarão muitos anos até que se possa fazer uma síntese completa do seu pensamento, escondido nesse imenso depósito.

Dentro do campo doutrinário, não podemos esquecer que João Paulo II foi o Papa que promulgou o novo Catecismo da Igreja Católica, uma obra solicitada pelo próprio Concílio Vaticano II. Foi uma nova síntese atual, em linguagem bem acessível, abrangente da fé e da doutrina moral da Igreja Católica. Talvez neste ponto, o Papa tenha levado uma certa decepção. Porque não foi realizado o esforço por ele solicitado de adaptar esse catecismo aos diversos povos.

3. Um Papa voltado para o diálogo ecumênico e inter-religioso- O terceiro ponto que desejo destacar é a atuação dialogante de João Paulo II. Como ele próprio falou, em 1985, para os integrantes da Cúria Romana, o Papa Wojtyla não considerava o ecumenismo como uma opção pessoal, mas como uma exigência que brota do próprio ser da Igreja. A encíclica Ut unum sint nos mostra o caminho do ecumenismo como algo ineludível. A Declaração conjunta católico-luterana, sobre a justificação por fé e graça é uma das realizações mais marcantes neste campo. Há, contudo, um ponto, onde a meta não foi alcançada: a reconciliação plena com os cristãos ortodoxos, um anelo profundamente enraizado, sonhado e ardentemente perseguido por João Paulo II. Todos os esforços nesse sentido ficaram muito além das expectativas. Interesses políticos e desconfianças históricas impediram que os esforços chegassem a bom termo.

Mas, ao lado do diálogo ecumênico, não podemos esquecer o diálogo inter-religioso. Por duas vezes, João Paulo II conseguiu reunir em Assis líderes religiosos mundiais, das mais variadas confissões. Não se tratou de uma ''mistura'' de religiões, como temiam os setores mais conservadores, mas de uma oração sincera, de acordo com as convicções de cada um, à procura de Deus.

Uma atenção especial mereceu o diálogo com os judeus. O O Papa Wojtyla foi o primeiro Romano Pontífice, após São Pedro, a entrar numa sinagoga. Foi ele também o primeiro papa que se recolheu em oração perante o muro das lamentações, inclusive depositando as suas petições nas fendas das pedras.

Foi ele também que não teve medo de encarar possíveis erros da Igreja no seu relacionamento com os fiéis de outras confissões cristãs ou de outras religiões. Promoveu estudos e encontros sobre temas tão espinhentos como o Holocausto, a Inquisição ou a atuação da Igreja durante a II Guerra Mundial. Foi ao encontro de todos com a mão estendida. Pediu perdão publicamente por erros históricos. Mostrou a grandeza de ânimo suficiente para entrar no novo milênio num espírito de conversão e penitência.

4. Um Papa peregrino- Um quarto ponto que deixa uma marca idelével é a universalização da presença da Igreja. João Paulo II, com a sua peregrinação pelos cinco continentes, a tornou visível em cento e vinte nove países, durante os quais pronunciou 3.288 discursos. Foi uma voz universal, multiplicada pelos modernos meios de comunicação social. Com as suas mensagens pascais e a suas saudações às multidões, fez falar a Igreja em mais de cem línguas. Ainda mais, ao promover Sínodos especiais para as diversas regiões, mostrou que nenhuma problemática lhe é alheia. As Exortações Apostólicas publicadas após esses sínodos traçam um panorama completo da situação e das tarefas em cada continente. Creio que tais exortações - no nosso caso, a Exortação Ecclesia in America - não foram devidamente refletidas e não foi tirado delas o riquíssimo fruto que podem produzir.

5. Um odor de santidade- Nenhum Papa chegou a apalpar a santidade na Igreja como o fez João Paulo II. Proclamou 1.388 beatos e 482 santos, muito mais do que qualquer outro anterior pontífice. Ainda mais, procurou que fossem adiante processos de canonização referentes a pessoas das mais diversas condições sociais. Através dessas ações do Papa, quase apalpamos a santidade na Igreja no nosso tempo. E essa é a última lembrança que nos fica dele: uma santidade proclamada, mas também vivida concretamente, dada como presente à Igreja