Título: A polícia do pacto federativo
Autor: Gustavo de Almeida
Fonte: Jornal do Brasil, 03/04/2005, Rio, p. A26

Nos anos 90, era comum a discussão sobre que tipo de profissional deveria ocupar a área de segurança: se um oficial da Polícia Militar ou se um especialista da Polícia Civil. Entre argumentos de que ''os PMs não vêem com bons olhos'' o comando de um civil e a retórica sobre a então rivalidade entre as duas polícias, surgiram os oficiais do Exército como Euclimar da Silva e o general Nilton Cerqueira. O discurso oscilava de acordo com o espectro político de quem estivesse no poder - de um lado a atenção às comunidades, de outro, a linha dura. Uma década depois, surgiu a verdadeira terceira via: um policial federal ocupando o cargo de secretário de Segurança Pública. Empossado no início de dezembro, o secretário e delegado federal Marcelo Itagiba começa a vislumbrar conquistas que foram dificuldades para seus antecessores na década passada. A mais visível delas é a união entre as polícias, graças à criação de um conselho de debates e da Força Tarefa Especial, a Forte, exclusiva para investigar mortes de policiais. Outro ponto conquistado nos últimos quatro meses: a aprovação de acordos com o governo federal na área de segurança - em breve, integrantes das forças federais estarão treinando no Morro do Vidigal. ''Além de ser um bom local de treino, é uma demonstração de que não há onde o Estado não possa entrar'', dispara.

Na sexta-feira, o secretário enfrentou as conseqüências da maior chacina da história do Rio de Janeiro, quando 31 pessoas foram assassinadas na Baixada Fluminense. Mais uma vez, a figura do chefe das polícias estaduais foi colocada à prova. Depois das providências de praxe, e de dar início às investigações ainda na madrugada dos crimes, Itagiba terminou o dia discursando para cada um dos policiais que servem aos batalhões da Baixada Fluminense. Perfilados, ouviram as palavras duras do secretário: ''Se policiais estiverem envolvidos nesta barbárie, ficaremos envergonhados para sempre com tamanha monstruosidade''. A resposta foi o silêncio respeitoso, de uma polícia pronta para ser uma só: a polícia de um pacto federativo, prestigiada e cortando na própria carne.

¿ A semana começou com uma reunião positiva, em que eram atendidas reivindicações de policiais. E terminou com suspeita de participação também de policias em uma chacina. Como o senhor recebeu os fatos?

¿ Defendo todos os bons e honestos policiais que arriscam as suas vidas em defesa de toda a sociedade. Mas repudio, com toda a minha veemência, os bandidos que se travestem de policiais e aterrorizam as populações civis. A Operação Navalha na Carne não terá fim, enquanto houver facínoras infiltrados entre os que honram as fardas e distintivos das quase bicentenárias polícias Civil e Militar do Estado do Rio.

¿ Das reuniões com associações de policiais no início da semana saiu alguma decisão?

¿ Já está criada a Força-Tarefa Especial, de nome Forte, para investigar os homicídios praticados contra policiais em serviço e fora dele. Será composta por policiais civis e militares e ficará alocada na Delegacia de Homicídios. Ainda defendo um outro ponto, que é o de que todo crime praticado contra policiais tenha pena em dobro. Também defendo que crimes praticados por policiais tenham pena em dobro. São crimes praticados por quem deveria estar representando de maneira correta o Estado e não o faz. Pretendemos fazer um convênio com o Corpo de Bombeiros para que nas grandes operações possamos ter uma UTI móvel acompanhando a ação para socorrer quem for necessário, inclusive civis.

¿ As grandes operações prosseguem?

¿ As operações fazem parte de uma estratégia da Secretaria de Segurança Pública, o nosso mote este ano é inteligência, massa e força. Estes são os nossos conceitos no combate à criminalidade. Reunindo estes três conceitos, são operações de grande, médio e pequeno porte, parte de uma estratégia global, demonstrando que o Estado entra sem ser confrontado em qualquer lugar do Rio. As grandes operações têm alguns objetivos. Primeiro, demonstrar que, quando entra com efetivos poderosos, massa e força, o Estado não é confrontado. Ganhamos assim a confiança da comunidade, que começa a passar informações que viabilizam as segundas e terceiras operações, desarticulando assim o tráfico de drogas. Em todos os lugares por onde andamos depois surgiram operações que resultaram na prisão de alguém com armas e granadas.

¿ Como o senhor acertou a parceria com o governo federal?

¿ Eu montei um planejamento operacional para a Secretaria de Segurança Pública com base neste modelo que acabei de mencionar: inteligência, massa e força. O Rio é um dos primeiros estados da federação a integrar o Sistema Nacional de Segurança Pública, em uma reunião no Palácio Guanabara, com a presença do ministro da Justiça, do então secretário nacional Luiz Eduardo Soares, do secretário Garotinho. O Estado do Rio nunca se negou a participar. Sempre entendeu que há que se trabalhar de forma integrada no combate ao crime, até porque o Rio não produz armas, não produz drogas, então temos que trabalhar com aqueles que têm a obrigação e a co-responsabilidade de impedir que armas e drogas entrem em território nacional. Esta responsabilidade cabe às forças federais. O secretário de Segurança Pública passa a ser o coordenador do gabinete de gestão integrada. Apresentei este plano, e nesta reunião ele foi prontamente aprovado por todos os integrantes, entre os quais um representante da Secretaria Nacional de Segurança Pública.

¿ O governo federal aprovou logo?

¿ O plano foi levado para Brasília e lá acharam a idéia excelente. Mandamos policiais militares do Rio para o treinamento na força nacional e decidimos então que todos nós temos que trabalhar em prol da segurança. Em Brasília, nos solicitaram o Batalhão de Operações Especiais (Bope) do Rio, para dar um treinamento, eles querem aprender as técnicas do Bope. Nós vamos encaminhar uma turma em breve e ainda vamos usar a base de treinamento recém-aberta no Morro do Vidigal, onde pode-se fazer treinos de operações em mata, por exemplo.

¿ Não é ousado fazer treinamentos em uma favela com tantas guerras?

¿ A vida é feita de símbolos. O primeiro deles é o de que a casa do traficante Lulu é hoje uma companhia da Polícia Militar. A comunidade do Vidigal tem um centro de treinamento para incursões. Então é uma forma de reafirmar a presença do Estado e ainda levar segurança para aquela comunidade, onde 99% das pessoas são ordeiras e trabalhadoras e muitas vezes estão submetidas ao grupo de traficantes que se acumpliciam com uma minoria de uma elite consumidora de drogas. Uma elite que prefere prestigiar criminosos investigados do que dar apoio à polícia.

¿ Como esta elite prestigia o crime?

¿ A cumplicidade mesmo é o consumo. Precisamos ter a nítida visão de que cada vez que a pessoa compra droga, está contribuindo para o processo de violência que muitas vezes vitima pessoas inocentes e o próprio consumidor. Este processo precisa ser evitado.

¿ A Zona Sul ainda brilha à noite, como disse certa vez o delegado Hélio Luz?

¿ Nós trabalhamos não só no tráfico violento das comunidades mas também na classe média do asfalto, uma classe média que começa a se aproximar da criminalidade. Chegou a hora de haver uma união de esforços por parte das polícias e da sociedade. Para se ter uma idéia, nestes dois anos prendemos mais de 45 mil bandidos, apreendemos nas mãos do bandidos mais de 30 mil armas ¿ não arma entregue voluntariamente pelo cidadão, e sim aquela retirada diretamente das mãos do bandido. E ainda prendemos 75 das chamadas lideranças do tráfico. Se olhar para os presídios de Bangu, vai ver que estão lá os nomes que eram considerados os chefes das organizações criminosas.

¿ E estes bandidos têm ligação com outros estados?

¿ Já recebemos presos de São Paulo, por exemplo. Este é o verdadeiro pacto federativo, em prol do povo brasileiro, em prol do combate ao crime. Não existe mais a menor dúvida quanto à ligação entre os criminosos do Rio e de São Paulo. Precisamos de um pacto social e um pacto federativo para que possamos reverter o quadro atual.

¿ Como a polícia entra em um pacto social?

¿ Temos que prestigiar os bons policiais e expurgar os maus. Em todo este processo, tanto no de valorizar os bons, quanto no de expurgar os maus, precisamos do pacto social. Precisamos que as pessoas reconheçam a necessidade de ter suas vidas preservadas, e quem preserva suas vidas é a polícia. Temos que sair do discurso da crítica para o discurso do apoio. A maioria dos filmes americanos tem a construção de uma imagem positiva, da ação policial correta. O policial não vem de Marte, ele é arregimentado no seio da sociedade. Muitas vezes o policial vem com problemas que são como um espelho de muitas coisas que a sociedade tem exposta.

¿ Os problemas econômicos não são um fator, por exemplo, que empurra o policial para a corrupção?

¿ Quanto se abre um concurso para a polícia, todo mundo sabe qual o salário e qual o trabalho. Polícia não é emprego, é vocação. Quem vai buscar vaga na polícia atrás de emprego, está fadado ao insucesso. Em determinadas profissões na vida, você tem que ter o comprometimento com o trabalho. Polícia não é fonte de enriquecimento para ninguém, é ideal.

¿ Nestes quatro meses, o que lhe traz mais orgulho?

¿ Para mim, cada pequeno avanço é um incentivo para que eu continue com meu trabalho. Das pequenas coisas, vamos fazer as grandes. Vamos cada vez mais confrontar os traficantes, combater o crime, e levar a cidade a uma situação em que se possa dizer que o Rio é uma cidade sem medo. As pessoas gostam muito de fazer passeata da estátua do Zózimo até o Arpoador pedindo paz, usando roupas brancas. Mas quero ver uma passeata dizendo ¿vamos parar de usar drogas¿. Este é um dos pactos sociais que precisamos fazer.