Título: Renúncia
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Fonte: Jornal do Brasil, 08/04/2005, Internacional, p. A7

Divulgação de testamento revela que papa avaliou deixar o trono de São Pedro

CIDADE DO VATICANO - Pouco antes de completar 80 anos, na virada do milênio, João Paulo II se questionou até quando deveria continuar à frente da Igreja, revelou ontem o Vaticano, com a divulgação do testamento do pontífice. O documento, de 15 páginas, foi escrito pelo papa ao longo de 22 anos e contém reflexões sobre a morte ¿ especialmente depois do atentado que sofreu em 1981 ¿, seu legado e sobre a ¿força necessária¿ para continuar a missão. ¿A época em que vivemos é extremamente difícil e perturbadora¿, escreveu em 1980. ¿O caminho da Igreja também se tornou difícil e tenso, tanto para fiéis quanto para pastores¿.

Na mesma nota, ele também manifesta preocupação com a segurança da Igreja e da Polônia, sua terra natal, pouco antes da queda do regime comunista.

¿Em alguns países, a Igreja está passando por um período de perseguição não menos intenso do que nos primeiros séculos, de fato, supera aqueles, no que diz respeito ao grau de crueldade e de ódio¿, escreveu. Em nota redigida anos mais tarde, comemorou o fato de o comunismo ter acabado sem uma guerra nuclear.

No texto, o santo padre afirma não ter qualquer bem material para deixar como herança, apenas pequenos objetos que podem ser distribuídos como for mais conveniente e, ao agradecer o secretário pessoal de quase 40 anos, o arcebispo polonês Stanislaw Dziwisz, pede que queime todas as suas anotações pessoais.

O documento menciona apenas duas pessoas que estão vivas, Dziwisz e o rabino de Roma, Elio Toaff, hoje aposentado. Toaff o recebeu na sinagoga da cidade em 1986, em um gesto histórico de reconciliação entre católicos e judeus.

São citados também seus pais, irmão e irmã ¿ que morreu antes que nascesse e ele diz nunca ter sido informado do motivo ¿, a infância e os primeiros anos como padre na Polônia: ¿À medida que o limite de minha vida na Terra se aproxima, meu espírito volta-se ao início¿.

A última anotação no testamento, todo escrito em polonês, foi feita durante o período da Quaresma do ano 2000, quando o pontífice já sofria de mal de Parkinson. É nesta passagem que ele parece considerar a renúncia:

¿Agora, no ano em que minha idade alcança os 80 anos, é necessário perguntar se não é hora de repetir as palavras bíblicas de Simão, Nunc dimitts [em referência à passagem: `Agora Senhor, você talvez deixe seu servo ir¿]¿.

Sobre o atentado sofrido na Praça São Pedro, no início da década de 80, João Paulo II afirma ter sido salvo por um ¿milagre¿.

¿A partir deste momento minha vida pertence ainda mais a Ele [Deus]. Espero que me ajude a reconhecer até quando devo continuar este serviço¿.

Em uma breve nota ¿ muitas delas aparentemente não foram concluídas ¿, o santo padre explica que gostaria de ser enterrado como o papa Paulo VI, cujo testamento disse ter lido e servido de inspiração para escrever o seu. João Paulo II pede que seu corpo seja enterrado sem adornos diretamente debaixo da terra, não em um caixão. Atendendo ao pedido, o corpo será enterrado na cripta da Basílica de São Pedro. O papa chegou ainda a considerar a possibilidade de o funeral ser realizado na diocese de Cracóvia, na Polônia, mas mais tarde deixou a decisão nas mãos dos cardeais.

¿Preste atenção, porque você não sabe que dia Deus virá (Mateus.24.42)¿, citou o pontífice logo no início do documento , ao dizer que tais palavras lhe recordavam ¿o chamado final¿.

Na última parte, dedicada aos agradecimentos, o pontífice menciona a Igreja Católica e outras religiões, assim como artistas, cientistas e políticos, pelo apoio durante o papado.

¿A todos eu digo uma única coisa: Que Deus vos recompense¿.

Segundo analistas, o revelador testamento de João Paulo II reabre o debate sobre se o futuro papa deve renunciar quando alcançar idade avançada ou se deve continuar à frente da Igreja apesar dos prováveis problemas de saúde. Poucos meses antes de Karol Wojtyla morrer, um grupo minoritário de cardeais ao redor do mundo já havia começado a discutir se o próximo papa deveria tomar esta medida. Os cardeais, por exemplo, têm de se aposentar quando completam 80 anos.

Nos últimos 18 meses, apontou ontem o jornal britânico The Time, a Igreja foi na prática dirigida por membros do alto escalão do Vaticano. Entre eles, o cardeal alemão Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, e o cardeal italiano Angelo Sodano, secretário de Estado. Tal foi o poder que conquistou Ratzinger nesse período que ganhou o apelido de João Paulo III, afirma o diário.

De acordo com especialistas, alguns dos últimos documentos publicados pelo Vaticano, como os que se referiam a relacionamentos homossexuais, foram, de maneira ¿suspeitosa¿, mais duros e doutrinários que os anteriores, ¿cheios de condenação dogmática¿.

Muitos papas e bispos acreditam que não seria positivo ter novamente a Igreja nas mãos de membros do alto escalão, com o papa relegado pela doença a continuar apenas com seu nome à frente da instituição. Nos bastidores, os cardeais chegaram antes a falar sobre eleger um novo pontífice que se comprometesse a resignar quando completasse 80 anos.