O Globo, n. 31471, 06/10/2019. Economia, p. 29

Desigualdade

Daiane Costa
Gabriel Martins


A redução do emprego com carteira assinada no país aumentou a distância entre as parcelas mais rica e mais pobre da população brasileira nos últimos cinco anos. O drama prolongado no mercado de trabalho fez a desigualdade da renda do trabalho voltar ao patamar de 2007. Em 2014, quando começou a recessão, o grupo dos 10% mais bem remunerados concentrava cerca de 49% do total da renda. No fim do mês passado, essa fatia chegou a 52%. Ao mesmo tempo, aparcela acumulada pelos trabalhadores que formam os 50% mais pobres recuou de 5,7% do total da renda no país para 3,5%. A conclusão é de um levantamento feito pelo cientista social e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole da USP Rogério Jerônimo Barbosa, autor de um artigo sobre o tema publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Ele explica que isso aconteceu porque a destruição de vagas formais durante os anos de recessão atingiu mais os trabalhadores que já ganhavam menos.Boa parte deles foi, no máximo, realocada na informalidade, geralmente com remuneração baixa e sem benefícios como décimo terceiro, adicional de férias e horas extras. Dessa forma, a renda média entre os 50% mais pobres hoje é de apenas R$ 98,96. Isso por causa do grande contingente sem ocupação. Já no andar de cima, foi mais fácil manter a carteira assinada.

— A dinâmica de concentração tem a ver com o fato de que os que permaneceram empregados na formalidade são os mais qualificados e que concentravam os maiores benefícios inerentes à carteira de trabalho —diz Barbosa. O desemprego vem cedendo este ano, mas ainda ancorado no setor informal. O número de vagas formais criadas ainda não é suficiente para repor o que foi perdido na crise.

Vagas mantidas no topo

No topo da pirâmide, onde a renda média é de R$ 8.332,41, os empregados de setores como educação, saúde, administração pública e serviços financeiros foram os que mais conseguiram proteger seus empregos, segundo o trabalho de Barbosa. Os três primeiros são justamente setores de maior gasto público, com muitos contratos de trabalho estáveis via concursos. No setor privado, a demanda por serviços de educação e saúde é mais protegida da crise, o que mantém oportunidades para profissionais como professores e médicos. O médico radiologista Patrick Grof, de 34 anos, por exemplo, tem dois empregos. Nos anos de crise, atuou em hospitais públicos e privados:

—Quando o emprego público atrasou pagamentos, consegui manter minha renda com o salário da rede privada. Os dois empregos podem ser vistos de forma complementar. Na crise, o setor de saúde também sofre. A rede pública fica suscetível a atrasos, enquanto na rede particular existe a possibilidade de não haver aumentos. Mas, trabalhando nos dois setores, tenho mais segurança —conta o médico. Já entre os mais afetados pela perda de emprego formal, o estudo aponta os trabalhadores da construção civil. Segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged) do governo federal, o setor destruiu perto de 900 mil vagas formais entre 2014 e agosto de 2019.

No Sindicato dos Trabalhadores de Montagem e Manutenção Industrial de Itaboraí (Sintramon), diariamente dezenas de ex-operários da construção civil buscam informações sobre a possibilidade de voltar ao mercado. Na última quinta-feira, não foi diferente. Na saleta da entrada da entidade, havia ao menos 30. A área no entorno da cidade da Região Metropolitana do Rio perdeu cerca de 20 mil empregos comc arteira no setor, principalmente devido à desaceleração da sobras do Com perj, projeto petroquímico que foi reduzido pela Petrobras.

No sindicato, é possível ouvir diariamente histórias como a do pintor industrial Luis Claudio Pereira, de 39 anos. Sem emprego depois de 18 anos na mesma empresa, em Niterói, enche os olhos d’água ao relatar o sufoco que tem sido a sua vida. Saiu de um salário de R$ 2,3 mil mensais para renda zero. Não tem mais dado conta de pagar a pensão de dois filhos menores, do primeiro casamento:

— É desesperador um chefe de família como eu ficar sem emprego. Todo o meu seguro-desemprego e a rescisão já foram e, há quatro meses, não consigo pagar as pensões. Minha esposa já está incomodada. Sentado ao lado de Pereira, o pedreiro José Geraldo da Silva, de 52, também desabafa. Os dois cresceram no mesmo bairro, em Itaboraí. Para além das contas que começam a acumular —como dois meses de condomínio atrasado —, a maior preocupação de Silva hoje é a educação do filho adolescente, de 14 anos:

—É  uma fase muito complicada da vida. Ele é pré-adolescente,preciso ter condições de dar o mínimo de conforto a ele, para que não fique suscetível a ser cooptado (pela criminalidade) na rua. Devo fazer um bico de segurança por três dias a partir de amanhã (sexta feira), para ao menos pagar meu condomínio atrasado.

Orçamento apertado

Francisco de Assis Fernandes, de 52 anos, que também é pedreiro e está desempregado, conta que falta dinheiro até para buscar emprego no sindicato, onde trabalhadores do setor do setor deixam currículos e esperam ofertas de empresas:

—Rachamos a gasolina para vir em grupo, usamos bicicleta ou vimos a pé. Ficamos o dia todo sem comer. Não sobra dinheiro nem para comprar uma água. A gente se priva de muita coisa.

— Tem vezes que preciso pedir o Riocard emprestado de algum amigo que não foi trabalhar naquele dia para buscar vaga — completa Luis Claudio Pereira. Vicente Braga era supervisor de obras e tinha um salário de R$ 8 mil mensais. Desde que perdeu o emprego, em 2015, vive de bicos. Teve de cortar os cursos dos filhos, de 16 e 19 anos, e não tem mais planos de saúde:

— Eles faziam curso de inglês, design e administração para se prepararem para o mercado de trabalho. E estão sem perspectiva de entrar para a faculdade.

A saída é o crescimento

O pesquisador Rogério Barbosa frisa que, apesar de configurarem uma renda flutuante, que o trabalhador não recebe todos os meses, os benefícios associados ao emprego formal como décimo terceiro, férias, horas extras e participação nos lucros são parte importante da composição da remuneração. Os desempregados expulsos para a informalidade perdem mais que o salário, e o resultado no conjunto é o aumento da posição privilegiada dos mais bem remunerados.

— Ainda que essas rendas sejam eventuais, o que elas proporcionam pode perdurar. Um salário a mais que você recebe no ano ajuda a iniciar um curso ou fazer uma viagem. Isso acaba se revertendo em capital cultural e humano e no aumento da produtividade — diz o pesquisador da USP. —No atual ritmo e composição, o mercado de trabalho não está contribuindo para reduzir a desigualdade Sergei Soares, pesquisador do Ipea, concorda que, enquanto a economia se mantiver patinando — as previsões são de crescimento em 2019 abaixo de 1% registrado nos últimos dois anos—,dificilmente a desigualdade vai cair:

— Perde o emprego a pessoa de baixa qualificação, que é mais fácil de repor, mas também já é a parcela mais vulnerável da população. O qualificado se mantém porque sua reposição gera custos, pois é necessário investir em treinamento. É desesperador como não conseguimos uma retomada da forte da atividade econômica. Para o economista Eduardo Moreira, autor de um livro sobre desigualdade, além do baixo desempenho da economia, há um problema de ordem prática que dificulta um avanço dos empregos formais: a tecnologia avançando mais rapidamente do que a capacidade de regulação do mercado de trabalho. Ele observa que serviços oferecidos por meio de sites especializados ou até mesmo por aplicativos, como os de transporte e de entregas, cresceram enquanto a formalidade do trabalho se fragilizou no país:

— Muitas pessoas que trabalham por meio de aplicativos hoje tinham um emprego melhor antes de ter assumido esta função. Diante da necessidade de renda, as pessoas aceitam ocupações que não exigem a formação que têm, por exemplo.