O Globo, n. 31515, 19/11/2019. País, p. 4

Toffoli abre mão de dados sigilosos
Aguirre Talento
Carolina Brígido
Leandro Prazeres


Após negar pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR), o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Dias Toffoli, recuou da própria decisão que lhe concedia acesso aos relatórios da Unidade de Inteligência Financeira (UIF), antigo Coaf, produzidos nos últimos três anos, envolvendo dados de cerca de 600 mil pessoas físicas e jurídicas. No despacho, Toffoli frisou que não cadastrou a senha necessária para acessar os documentos e que considerou as informações prestadas pelo órgão satisfatórias — e que, por esse motivo, revogava a própria decisão.

Antes do recuo de Toffoli, publicado à noite, o Ministério Público Federal (MPF) havia divulgado informações em defesa da legalidade do compartilhamento de dados de movimentações financeiras pelo antigo Coaf, e pediu à Corte a revogação da liminar de Toffoli que suspendeu em julho todas as investigações no país baseadas em relatórios do órgão. Só no MPF, 935 apurações estão emperradas. A medida de Toffoli provocou críticas de órgãos nacionais e internacionais.

O julgamento do caso pelo plenário do STF está previsto para amanhã. Os ministros decidirão se o uso de informações de órgãos de controle precisa ou não ser precedido de uma decisão judicial. Como O GLOBO já mostrou, reservadamente ministros afirmam que o Supremo deve estabelecer a exigência de que os Relatórios de Inteligência Financeira (RIFs) só sejam compartilhados após autorização judicial, mas costurando uma saída para que as atuais investigações não sejam anuladas.

O recuo do ministro do Supremo ocorreu após encontro com o procurador-geral da República, Augusto Aras, com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e com o advogado-geral da União, André Mendonça. Aras já havia pedido, na semana passada, que Toffoli anulasse sua própria decisão de ter acesso aos dados por considerar o ato invasivo, o que foi negado pelo ministro naquela ocasião.

Para demonstrar o prejuízo concreto que está acontecendo nas investigações, o MPF divulgou levantamento de casos paralisados como consequência da decisão de Toffoli: são 935 investigações afetadas, sendo a maioria por crimes contra a ordem tributária (446), seguidas por casos de lavagem de dinheiro (193) e crimes contra o sistema financeiro nacional (97). A contabilidade foi feita pelas 2ª, 4ª e 5ª Câmaras, órgãos de coordenação que cuidam, respectivamente, das áreas criminal, ambiental e de combate à corrupção dentro do MPF.

Em nota técnica que acompanhou os dados, os coordenadores das câmaras pedem ao STF a revogação da liminar e o reconhecimento da legalidade da atuação da UIF. A nota é assinada pela subprocuradora Luiza Frischeisen (coordenadora da 2ª CCR), subprocurador Nívio de Freitas (coordenador da 4ª CCR), subprocuradora Maria Iraneide Santoro Facchini (coordenadora da 5ª CCR) e os demais membros das câmaras.

FLÁVIO BOLSONARO

Além desses 935 casos federais, há outras investigações paralisadas na esfera estadual, como a que tem como alvo o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) pela suspeita de “rachadinha” em seu gabinete na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Foi um pedido de Flávio, alegando ilegalidade no compartilhamento de dados do Coaf, que levou Toffoli a suspender todos os casos baseados em informações do órgão.

Outro caso impactado pela decisão é o inquérito sobre movimentações financeiras suspeitas de Ronnie Lessa, policial militar acusado de ter assassinado a vereadora do PSOL Marielle Franco — este procedimento poderia elucidar suspeitas sobre os mandantes do crime.

As paralisações também afetaram ações na área ambiental: sete investigações envolvendo crimes como desmatamento e extração e venda ilegais de ouro na Amazônia tiveram de ser suspensas. Em um dos casos, o volume financeiro movimentado pela organização criminosa investigada foi de R$ 100 milhões em quatro anos.

Em manifestação enviada ao STF ontem, Augusto Aras afirmou que os relatórios do órgão não incluem extratos completos das contas dos investigados e apenas citam movimentações que foram consideradas atípicas ou suspeitas de lavagem de dinheiro. “É tecnicamente impossível ao órgão realizar qualquer tipo de ‘devassa’ em movimentações bancárias alheias, até porque sequer possui acesso a essas informações”, escreveu Aras.

O procurador-geral forneceu ainda estatísticas sobre o recebimento de dados. Segundo ele, o MPF recebeu 972 RIFs de 2017 a 2019, enviados de forma espontânea pela UIF. Procuradores podem pedir mais detalhes sobre os relatórios depois que eles chegam, explicou Aras.

O procurador-geral deve enviar aos ministros do STF um memorial com os principais argumentos da PGR para o julgamento de amanhã, reforçando que a criação de obstáculos no repasse de dados pode afetar a imagem internacional do Brasil perante investidores.

Na semana passada, após agendas de trabalho no Brasil, o presidente do Grupo de Trabalho da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) sobre Suborno, Drago Kros, cobrou do STF a derrubada da liminar de Toffoli e apontou que a restrição atrapalha o combate internacional à corrupção:

— Esperamos que o STF entenda que essa liminar não segue os padrões internacionais de combate à lavagem de dinheiro.

“É tecnicamente impossível ao órgão realizar qualquer tipo de ‘devassa’ em movimentações bancárias alheias”

Augusto Aras, procurador-geral da República