O Globo, n. 31515, 19/11/2019. País, p. 8

Dividido, STJ julga federalização do caso Marielle
Chico Otavio
Vera Araújo


A pouco mais de um mês para o recesso do Judiciário, a 3ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ) deve decidir, até o fim do ano, se federaliza ou não o caso Marielle. O colegiado é formado por dez ministros, mas como o presidente da seção, Nefi Cordeiro, não vota, caberá aos outros nove julgar se a investigação sobre os supostos mandantes das mortes da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Gomes continuará com a Polícia Civil e o Ministério Público do Estado do Rio (MP-RJ) ouse passará para as mãos da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público Federal (MPF).

Em conversas com o GLOBO, ministros da Corte disseram, reservadamente, que o colegiado está dividido, embora haja uma discreta tendência de manter o caso na esfera estadual. A próxima sessão, a penúltima do ano, está marcada para o dia 27. Há uma expectativa de que a relatora Laurita Vaz já coloque em votação o Incidente de Deslocamento de Competência (IDC), nome técnico do pedido de federalização. A outra hipótese é de ser incluído na pauta de 11 de dezembro, última sessão de 2019.

A parte do colegiado favorável à apuração do caso no Estado do Rio entende que a troca dos órgãos de investigação, a esta altura, representaria um atraso na elucidação em torno do nome dos mandantes do crime, cuja apuração já dura um ano e oito meses. Ministros que corroboram essa tese acreditam que não há inércia por parte das autoridades fluminenses na medida em que os supostos executores do crime — o PM reformado Ronnie Lessa e o ex-PM Elcio Queiroz — já viraram réus no processo que apura o assassinato.

Por outro lado, os demais julgadores da Corte que defendem a federalização explicam que a transferência para a esfera federal seria importante por acreditarem que o MPF e a PF teriam mais recursos para se chegar ao mandante do crime, principalmente, se ele tiver foro por prerrogativa de função. O caso federalizado evitaria conflito de competência.

“EVENTUAL FRACASSO”

Ao buscar a federalização do caso em 17 de setembro, a ex-procuradora-geral da República Raquel Dodge argumentou que, após mais de um ano da morte da vereadora, os investigadores não chegaram nem aos mandantes, nem descobriram a motivação do crime. Dodge chegou a dizer que o “eventual fracasso da persecução criminal do mandante importaria a responsabilização internacional do Estado brasileiro”.

Ex-ministro da Defesa e Segurança Pública, Raul Jungmann sempre esteve ao lado de Dodge em favor da federalização. Segundo ele, a morte de Marielle é um atentado contra a democracia, principalmente, por ela representar os direitos humanos:

— Estamos diante de um crime contra os direitos humanos de repercussão nacional e internacional. A federalização é necessária porque, de fato, existem informações que atestam que há o envolvimento de agentes públicos, inclusive da própria área de segurança do Rio. Pelo que se sabe, também há ligação de políticos nesta questão.

O coordenador de Direitos Humanos da Defensoria Pública, Fábio Amado, que representa os pais de Marielle, Marinete da Silva e Antônio Francisco da Silva Neto, reconhece o trabalho do MP-RJ à frente do caso e defende que as apurações sejam mantidas no Rio de Janeiro:

— Os familiares entendem que o eventual deslocamento de competência neste momento não contribuirá para a identificação dos autores, acarretando, inclusive, lentidão ao procedimento. Mais interessante e produtiva seria a criação de um gabinete interministerial reunindo tanto o MPRJ quanto do MPF.

Fontes do STJ informaram que a relatora Laurita Vaz ainda tinha muitas dúvidas sobre a posição a ser tomada. Na última quarta-feira, a ministra deu início ao relatório sobre o caso, além de fundamentar seu voto. Como não há um rito específico para o julgamento da federalização, cada membro age de uma forma. Hoje, o processo, que é físico e se encontra sob sigilo, está com o MPF. No entanto, a ministra estabeleceu que os Ministérios Públicos Federal e Estadual façam suas alegações finais, o que ajudaria no convencimento dos demais ministros e da relatora.

Por parte do MPF, o que se tem certeza é que o atual procurador-geral da República, Augusto Aras, irá ratificar o pedido de Dodge. A ex-procuradora alegou que havia indícios de envolvimento do conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ) afastado Domingos Brazão como mandante do crime. Conforme O GLOBO revelou em setembro, relatório da PF mostrou que a disputa por pontos políticos estaria por trás de um possível envolvimento de Brazão.

Um fato que pode influenciar o STJ a federalizar o caso foi o depoimento de um porteiro do condomínio Vivendas da Barra, onde mora o sargento reformado Ronnie Lessa, acusado do crime. Ele contou que o outro suspeito do crime, Élcio de Queiroz, informou o número da casa do então deputado federal Jair Bolsonaro para ter acesso ao local. O MP-RJ, com base em áudios de diálogos da portaria, afirmou que a informação prestada era falsa.

Em nota, o MP-RJ mantém sua posição pela não federalização: “O MP-RJ, por meio de ofícios encaminhados à Procuradoria-Geral da República e junto ao Ministério da Defesa, já se manifestou contra as reiteradas e reincidentes tentativas de federalização, destacando o trabalho integrado entre os órgãos encarregados da persecução penal e a postura independente dos órgãos estaduais que culminaram na denúncia contra os executores do crime, que respondem a processo no IV Tribunal do Júri da Capital. A segunda fase da investigação prossegue de forma célere para identificação dos possíveis mandantes. (...).”

A Polícia Civil do Rio também defende a permanência do caso no Rio. Segundo o chefe do Departamento Geral de Homicídios e Proteção à Pessoa, delegado Antônio Ricardo Nunes, não há de se falar em inércia da polícia.

“O eventual deslocamento de competência não contribuirá para a identificação dos autores” 

Fábio Amado, coordenador de Direitos Humanos da Defensoria Pública

“Estamos diante de um crime contra os direitos humanos” 

Raul Jungmann, ex-ministro