Título: Conforto
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Fonte: Jornal do Brasil, 08/04/2005, Internacional, p. A9

Fiéis superam sacrifício na fila para se despedir do papa antes de a basílica fechar

VATICANO - Depois de esperar até 10h na fila para ver o corpo de João Paulo II, fiéis deixavam a basílica de São Pedro na manhã de ontem aparentando cansaço e, ao mesmo tempo, realização pessoal. Para eles, as olheiras e as pernas doloridas não eram maiores que a sensação de ¿missão cumprida¿. O grupo de poloneses Kate Rodak, de 19 anos, Marcin Szostak, 23, e Maciej Zamarlik, 21, saiu da catedral abraçado. Tinha viajado 17h de carro desde Varsóvia, capital polonesa. Disseram ter esperado mais de 5h para dar o adeus definitivo ao conterrâneo Karol Wojtyla.

¿ Ele está morto, mas não posso deixar de sentir felicidade por tudo que representou ao mundo e, principalmente, à Polônia ¿ disse.

O médico Charles Alfano, 57, disse ter chegado ao Vaticano no domingo. Afirmou que, durante dois dias, hesitou em entrar na fila - tal o seu tamanho. Americano de Connecticut, católico praticante, Alfano afirma que só decidiu fazer isso na madrugada de ontem, e passou oito horas esperando a vez de entrar na basílica.

¿ Foram oito horas que eu usei para pensar em Deus, em João Paulo e na minha vida. Estou morto de cansaço, mas feliz ¿ disse.

O suíço Charles Lorenceau, 23, estudante de economia radicado em Roma há três anos, disse que chegou a entrar na fila três vezes, em diferentes momentos, mas sempre desistiu. Ontem, voltou pela manhã, teve a sorte de pegar um momento com menos fiéis e passou ¿só¿ 4h esperando.

¿ Foram apenas dois segundos diante de João Paulo, mas um sonho. Agora espero que o próximo papa seja brasileiro ¿ diz o suíço, que namora a brasileira, Clarice, de Porto Alegre.

Nem só alegria emanava dos fiéis que passaram a noite na fila. Os estudantes e namorados poloneses Ágata Marozas, 20, e Piotr Konalski, 21, andaram 25h num ônibus de Varsóvia a Roma, passaram mais cinco na fila de madrugada, mas desistiram. Os dois disseram ter se sentido mal de noite, e que pioraram pela manhã. Por volta das 11h, pálidos e carregando enormes mochilas, decidiram ¿acampar em algum lugar¿ e esperar para ver o enterro em algum dos 27 telões espalhados por toda a cidade.

¿ João Paulo II sabe que nos fizemos tudo que podíamos ¿ disse Ágata, conformada.

Além da música e das orações em voz alta por grupos de poloneses, o meio de passar o tempo de espera era especulando sobre o resultado do conclave que elegerá o novo papa, que começa dia 18.

¿ Eu gostaria que fosse um sul-americano ¿ dizia o italiano Fabrizio Mazei, 26, com a aquiescência de sua namorada, Ilania Sangermano, 20. Já Francezca Pozzi, 21, e Serena Console, 22, de Modena, ambas professoras infantis, sonhavam com um papa negro.

¿ Seria o único que poderia unir a igreja tanto quanto o João Paulo II ¿ afirmavam.

Maximiliano Croce, 25, também de Modena, queria um papa italiano.

¿ Tem de ser o Dionigi Tettamanzi (arcebispo de Milão). Nós, italianos, queremos um papa italiano ¿ disse, sendo vaiado pelos amigos. ¿ Nós, italianos, queremos aquele que o Espírito Santo decidir ¿ rebateu Letícia Marelli, economista.

Depois que a passagem foi fechada, no fim da noite de ontem, a fila foi se reduzindo até acabar. O último peregrino deixou a basílica por volta da meia noite e os portões foram trancados para que o cerimonial do funeral ¿ que começa às 5h e será transmitido ao vivo pelas TVs de todo o mundo ¿ pudesse ser organizado. Do lado de fora, restaram toneladas de lixo, odores, jardins destroçados e empregados de limpeza exaustos como resultado da emocionada procissão. A prefeitura de Roma calculou que 3 milhões de pessoas foram ao velório.

Segundo as autoridades romanas, os serviços de limpeza recolheram 30 toneladas de lixo, concentradas principalmente na região do Vaticano.

¿ Passo a noite inteira trabalhando, limpando os mais de mil banheiros públicos que foram instalados nos arredores da basílica ¿ explicou um gari enquanto desinfetava, com uma mangueira e sabão, as cabines instaladas na Via da Conciliação, na entrada da praça.

Depois que o acesso foi bloqueado, a limpeza foi facilitadas. Mas havia ainda muito trabalho a fazer, com milhares de garrafas vazias, jornais, roupas e outros apetrechos que os peregrinos deixam para trás.

¿ Tudo pelo mesmo salário. O que vamos fazer!?, queixava-se outro trabalhador de 60 anos um dos mais velhos dos homens vestidos de laranja e verde.

Além do lixo nas ruas, também ficou o odor das pessoas que passaram intermináveis horas espremidos na fila. Cansados e desidratados, muitos passaram mal e vomitaram na rua. A entrada para o coração da Igreja Católica ficou parecendo mais o cenário de uma grande festa ou de uma batalha campal. Vários restaurantes próximos ao Vaticano proibiram o acesso dos peregrinos a seus banheiros se não consumissem algo antes.

¿ Me senti um pouco animal no meio da fila, suportando toda esta porcaria. Sem fé, não poderia agüentar, isso é certo ¿ afirmou uma jovem italiana.