Título: A persistência do abuso
Autor:
Fonte: Jornal do Brasil, 08/04/2005, Opinião, p. A10

O novo capítulo da inesgotável novela sobre mudanças nas regras de edição e tramitação de medidas provisórias sugere um real empenho do Palácio do Planalto. Desta vez, os principais partidos de oposição, PSDB e PFL, defendem alteração ampla o suficiente para proibir a edição de MPs sobre qualquer matéria tributária. O governo aceita limitar o mecanismo somente quando se tratar da criação de novos tributos. A artimanha deve gerar novos conflitos entre os dois poderes. São nítidos os incômodos crescentes dos parlamentares, cada vez mais insatisfeitos com a condição de simples aprovadores de MPs. Uma preocupação justificável. A má utilização do recurso, afinal, provoca efeitos institucionalmente desastrosos: limita a liberdade do Legislativo, estimula a paralisia das votações do Congresso e permite superpoderes ao Palácio do Planalto. Por outro lado, governar via MPs é mais fácil para o Executivo. Reduz os custos políticos de negociação no Congresso e torna mais rápida a implementação de políticas públicas. Mas as conseqüências são demasiadamente arriscadas para a democracia.

Criadas na Constituição de 1988, as medidas provisórias desvirtuaram-se especialmente no governo FH, mas ganharam especial vigor na gestão do presidente Lula. Em estudo recente, os cientistas políticos Fabiano Santos e Márcio Grijó Vilarouca, do Iuperj, calcularam uma média mensal de quatro MPs nos oito anos de mandato tucano. A média subiu para 5,5 no governo petista - decorrente, sobretudo, da maior heterogeneidade da base parlamentar de apoio a Lula e do alto padrão de dificuldades nas relações atuais entre Executivo e Legislativo.

Trata-se de um diálogo difícil, fruto de uma Constituição parlamentarista em vigor num regime presidencialista. Esse dilema explica em parte os problemas de governabilidade. Para um presidente governar e ser bem-sucedido no Brasil, precisa montar uma coalizão majoritária. Sem ela, os caminhos se tornam tortuosos. Resultado: os números dos últimos dez anos excedem os limites do bom senso ante um recurso destinado a assuntos de ''relevância e urgência'', como afirma a Constituição. Governar sem tal abuso é mais difícil. Mas é o preço a pagar pelo respeito à democracia e pelas atribuições constitucionais dos poderes.