Título: João de Deus e os homens
Autor: José Sarney
Fonte: Jornal do Brasil, 08/04/2005, Outras Opiniões, p. A11

Seu corpo, hoje, eternamente, vai repousar ao lado de S. Pedro. O mundo inteiro o reverencia.

Passamos mais de um quarto do último século com a companhia do Papa João Paulo II. Habituamo-nos a viver com sua regência moral, inabalável em seus princípios e convicções. Nenhum homem na história da humanidade foi tão visto, tão acompanhado e tão admirado. Coincidiu com sua ascensão ao papado a eclosão da sociedade de comunicação, em que todas as coisas, em todos os lugares e ao mesmo tempo são comungadas com todos os povos, de todas as nações.

A Igreja teve a inspiração de nesse momento ter uma personalidade carismática, uma liderança forte, um homem de cultura, poeta e pensador, cuja personalidade tinha muitas facetas. O indivíduo Karol Wojtyla, filho de soldado, neto de alfaiate, só no mundo, órfão que buscou na Igreja e na Virgem Negra de Cracóvia, na crença em Deus, mãe e pai. Teve a experiência de viver como operário, estudante e ator. Conheceu a brutalidade do nazismo na perseguição aos judeus e cristãos, no extermínio de uns e outros, patriotas massacrados. A Polônia sai das botas alemãs para os coturnos soviéticos. Em ambos momentos sofreu a perda da liberdade.

Em sua personalidade convivem o místico, o homem de fé, o missionário, o peregrino. Como Papa descobre-se o líder. Encontra a Igreja dividida e à borda da secessão entre o lado espiritual e a Igreja da Libertação, de prioridade para o social. Não estabelece nenhuma inquisição nem impõe o predomínio de suas convicções. Sua arma é a fé, o chamamento à missão da Igreja. Silenciosamente, unifica sua Casa. Depois, como estadista e homem do mundo, joga sua força moral para apoiar as forças que resistem contra o comunismo. Ele vivera as perseguições religiosas, as missas clandestinas, o desmonte das catedrais. E é assim que devemos a ele ter acabado a confrontação ideológica entre comunismo e capitalismo, ter caído o Muro de Berlim e desaparecido a perspectiva de guerra nuclear. Depois vem o pacifista, que deseja aproximar todas as religiões, pede perdão pelo passado e abre o caminho do futuro com ortodoxos, muçulmanos, judeus, agnósticos, evangélicos e todas as confissões. Extensão desta visão o leva a condenar todas as guerras e por último fulminar o conceito de Bush da guerra justa, pretexto para a invasão do Iraque.

Outra face é a determinação que o faz ficar com o rosto de profundo sofrimento, a boca aberta procurando o fôlego de Deus para cumprir sua missão até o fim. Não tendo mais voz, suas mãos trêmulas dão a última benção.

Abre-se agora o vácuo e a espera do seu sucessor. Por melhor que ele seja levará muito tempo para ocupar o espaço do Papa João Paulo II.

O conclave já não será como nos tempos passados, trancafiados na Capela Sistina, sem contacto com o mundo. Não tem mais aqueles incômodos que nos revelou o cardeal Sílvio Oddi: ''Os cardeais são idosos, com problemas de próstata, cansados e maltratados pela existência de um banheiro para cada dez pessoas.''

Uma coisa é fora de dúvida. No Conclave, na solidão da escolha, em todas as consciências, no meio da sala, nos altares e nas articulações estará presente não a sombra, mas a obra de um Papa que fez o que S. João diz do Cristo: ''Amou os homens até o fim.''