Título: O legado: o resgate da religião
Autor: Leonardo Boff
Fonte: Jornal do Brasil, 08/04/2005, Outras Opiniões, p. A11

João Paulo II foi um homem de profunda fé. Creu em tudo o que perfaz a galáxia eclesial, desde a água benta, as relíquias, os santos, os lugares sagrados até a SS. Trindade. A metafísica católica (a forma como os católicos entendem e organizam o mundo) é assumida em sua inteireza sem nenhuma restrição. Ele creu e assumiu aquilo que a Igreja diz que é sua função como Papa, descrita na primeira página do Annuario Pontificio: ''bispo de Roma, vigário de Jesus Cristo, sucessor do príncipe dos Apóstolos, sumo pontífice da Igreja universal, patriarca do Ocidente, primaz da Itália, arcebispo metropolita da Província romana, soberano do Estado da Cidade do Vaticano e servo dos servos de Deus''. O Papa subjetivamente incorporou este seu múnus. E o fez com absoluta convicção e inteireza. Ajudou-o o carisma que recebeu de Deus: a sedução de sua figura imponente, atlética e irradiante. Ajudou-o o fato de ter sido ator e que, naturalmente e com grazie sabia produzir uma irresistível dramatização mediática com o gesto impactante e a palavra exata. E tudo isso a serviço da causa da religião. Há nele uma fortíssima condensação do religioso, do espiritual e do místico que transparece no rosto que ora se transfigura, ora se fecha em contemplação e ora se contorce em dor. Empunhava a cruz com solenidade e força como quem empunha uma lança de cavaleiro conquistador.

O importante não é a avalanche de documentos de toda ordem que deixou, ultrapassando mais de cem mil páginas. O grande discurso é sua figura. O que permanecerá na história é sua imagem carismática, ao mesmo tempo vigorosa e terna e profundamente religiosa. Qual é o seu legado? Ele mesmo. Qual o conteúdo deste legado: a religião.

O legado: ele mesmo como uma figura carismática que veio preencher um vazio sentido no mundo inteiro. Há uma orfandade de líderes carismáticos. Os que existem ou são belicosos ou burocratas do poder. Não há um Gandhi, um Luther King, um Che Guevara ou uma Madre Teresa. As massas sentem a carência de um Edipo benfazejo, de um pai com características de mãe, do qual derivam inspiração e direção para o futuro. João Paulo II apontou um caminho.

O conteúdo: o resgate da religião para a publicidade do mundo, como força de galvaniza massas e como poder político, decisivo na derrocada do regime soviético. Contra a tendência secularizante da modernidade que tornara a religião politicamente invisível, João Paulo II mostrou que ela parte essencial da realidade e que pode produzir paz ou guerras.

Podemos discutir a orientação que deu à religião, numa linha conservadora, doutrinariamente fixista e moralmente rígida. Mas não podemos negar a relevância do elemento religioso e místico na configuração da nova humanidade.

Não obstante todos estes valores positivos, um cristão crítico não deixa de se angustiar. Esse Pontificado nos chamou para a essência do legado de Jesus que nos disse: ''vós sois todos irmãos e irmãs, não chameis a ninguém de pai na Terra porque um só é vosso Pai, aquele que está nos céus, não vos façais chamar de mestres, porque um só é vosso Mestre, o Cristo''? Os verdadeiros adoradores se encontram no grande espetáculo mediático ou quando ''adoram o Pai em espírito e verdade''? Aqui outros são os critérios de avaliação.