Título: O testemunho do pontífice
Autor: Ricardo Dias Neto
Fonte: Jornal do Brasil, 08/04/2005, Internacional / Além do fato, p. A12

Quero dar meu depoimento pessoal a respeito de João Paulo II. Tive a oportunidade de seguir de perto os últimos dias do santo padre. Por dever de ofício, precisei ir a Roma duas vezes nesta Quaresma. Em fevereiro, participei do encontro sobre migrações, promovido em conjunto pela Igreja e pelo Estado italiano. No contexto desta reunião, tivemos a audiência com o sumo pontífice, na quarta-feira, dia 23 de fevereiro. Foi a última audiência pública agendada pelo Papa João Paulo II. No dia seguinte, foi internado no hospital.

Em março, fui convidado a participar das celebrações em Roma dos 25 anos do martírio do Bispo Dom Oscar Romero (morto em 24 de março de 1980, em El Salvador, Dom Oscar Romero viveu denunciando torturas, massacres, prisões arbitrárias e outras violações freqüentes dos direitos humanos).

Na quarta-feira, dia 16, tendo já retornado do hospital, João Paulo II surpreendeu a todos, aparecendo na janela do seu aposento, para abençoar a todos que estávamos na praça, ansiosos por saber notícias do seu real estado de saúde.

Da audiência do dia 23 de fevereiro, guardo do Papa João Paulo II a imagem que me parece ser a mais característica de todo o seu pontificado (1978-2005).

Estando já extremamente debilitado, tanto que no dia seguinte precisou ser internado no hospital, João Paulo II fez um esforço enorme para pronunciar todas as palavras destinadas a destacar as diversas delegações que faziam parte da audiência. Era visível o intenso sofrimento que lhe causava o esforço de falar. Mas insistiu em pronunciar todas as palavras, mesmo que o som lhe saísse quase inaudível.

Fez questão de cumprir tudo o que estava previsto. Mesmo que para isto precisasse empenhar todas as suas energias.

Esta me parece ser a tônica que imprimiu, de modo exímio, a todo o seu pontificado. Assumiu sua missão por inteiro, com convicção, empenhando nela toda a sua vida, até o último momento.

Ele nos deixa um testemunho de devotamento total, generoso, convicto, exaustivo. Este é o legado mais forte que deixa para a posteridade. O devotamento pessoal com que procurou cumprir a missão, da maneira como ele achava que devia ser cumprida.

Ninguém vai lembrar as palavras de sua última audiência. Mas ficará o testemunho pessoal do seu devotamento. Podem ser relativizados os milhares de discursos que ele pronunciou. Mas ficará o esforço que fez para se dirigir a todos.

A respeito de Jesus Cristo, a carta aos Hebreus fala que ele ¿aprendeu a obediência pelo sofrimento¿. A respeito de João Paulo II também é possível dizer que aprendeu a dura lição dos limites humanos. Ele fez mais de 100 viagens internacionais. Mas não fez uma que estava nos seus planos desde o início do seu pontificado. Morreu sem ter realizado o sonho de visitar a Rússia.

Quando em 1985 tive a oportunidade de participar pela primeira vez da ¿visita ad limita¿, junto com o episcopado do estado de São Paulo, fomos convidados a almoçar com o papa. Procurando um assunto que fluísse com naturalidade, a conversa sobre a Rússia animou de tal maneira o papa que passamos todo o tempo falando das possibilidades, e dos obstáculos, de uma possível visita a Moscou. Era evidente o fascínio que causava a hipótese de um encontro com as lideranças soviéticas, mas sobretudo o diálogo com a Igreja Ortodoxa Russa.

Mas, com o passar dos anos, as portas da Rússia foram se fechando cada vez mais para João Paulo II. Para a generosidade dos seus planos missionários foi um duro golpe, a mostrar os limites que a história impõe.

Diante de um pontificado tão extraordinário, como foi o de João Paulo II, não é de estranhar que a história indique também os limites que o cercaram. Até para nos lembrar que há tarefas novas, para o novo papa que esperamos. No entanto, este fez sua parte, fazendo mais do que o suficiente para merecer a admiração e a gratidão de todos.

Parabéns João Paulo II.