Título: 'Não tenham medo de ser santos'
Autor: Ricardo Dias Neto
Fonte: Jornal do Brasil, 08/04/2005, Internacional / Além do fato, p. A12

O que o papa João Paulo II semeou no coração da juventude durante os mais de 26 anos de ministério petrino torna-se evidente nestes dias em Roma. De todas as partes do mundo, multidões desejam render uma última homenagem ao Pastor que amou a humanidade. Quase todas as ruas vizinhas à Basílica de São Pedro estão intransitáveis. São centenas de milhares de pessoas que procuraram estar presentes, rezando e cantando. Pessoas de todas as idades, crianças e até doentes em cadeiras de rodas, ninguém se furta do compromisso de gratidão. As últimas palavras do papa, em seu leito de morte, foram dirigidas aos jovens: ¿Eu vos fui procurar. Vós viestes e estais junto de mim. Eu vos agradeço¿, uma expressão colhida palavra por palavra, em diversos possíveis momentos, quase montando um ¿quebra-cabeça¿. Esta chegou imediatamente no coração da juventude. As vigílias sob a janela do Palácio Apostólico testemunharam isso. Reuniam-se em grupos, faziam círculos com velas acesas e, com violões entoavam canções para ¿acalentar¿ o papa.

Assim fizeram durante dois dias e duas noites. Apenas isto já seria suficiente para se ter a certeza de que, em todos estes anos, o papa lhes falou ao coração. Mas os jovens são generosos ao extremo. Aqueles que não puderam estar presentes, durante os últimos dias de vida de Sua Santidade, enfrentaram a estrada e vieram a Roma.

O que encantava a todos era a manifestação da juventude. Depois de horas numa fila que se estendia de calçada para calçada, caminhava lentamente (100 metros em uma hora!) eles descobriam sempre um jeito novo de superar o cansaço e animar os que estavam por perto: músicas, hinos, orações, cantos próprios dos seus países, palavras de ordem e gritos de entusiasmo, balões coloridos, lenços e faixas, cartazes e pôsters, tudo era motivo para manter no rosto o sorriso que conquistou João Paulo II.

O clamor deste papa aos jovens: ¿Não tenham medo de ser santos¿, foi acolhido plenamente pela juventude. E isto pudemos ver: no rosto desses jovens que irradiavam alegria e felicidade mesmo depois de 10 horas na fila, dormindo nas ruas, comendo e bebendo daquilo que puderam trazer com suas poucas reservas.

Por força do meu trabalho no Vaticano, estou acompanhando de perto todos estes momentos. Fiz questão de, ao voltar para casa nestes dias, passar pelo meio da multidão andando contra a corrente para colher as expressões. E eu o fiz também para poder ir dizendo alguma palavrinha de conforto e de esperança. O que faço em 10 minutos, levei quase duas horas.

A melhor avaliação destes dias acontecerá bem mais tarde. O povo o aclama ¿santo¿, como as antigas canonizações por aclamações medievais. O mundo inteiro chora sua morte e as nações o reconhecem como um líder que modificou o planeta em sua estrutura geopolítica. Mas, acima de tudo, alguém que levou ao coração da humanidade a mensagem de amor verdadeiro pregado por Jesus.

Na manhã, quando fui ao meu trabalho, usei o caminho mais curto possível para poder chegar em tempo de preparar a nossa edição semanal. Entrei pela via del Perugino, atrás da Basílica, e passando pelos jardins do Vaticano alguma coisa me fez entrar para me despedir do papa. Era como se todas as portas se abrissem. Passei pela entrada do corpo diplomático e em dois minutos estava no Altar da Confissão, onde o corpo do pontífice se encontra desde a última segunda-feira. Fiquei um pouco atrás de algumas pessoas, dentro do cordão de isolamento, quando um dos sediários levou-me ao genuflexório da primeira fila, ao lado do catafalco. Ajoelhei-me por alguns minutos e pude ver de perto aquele rosto tão querido que parecia de alabastro.

Nas mãos, o rosário; na cabeceira, a Sagrada Escritura aberta e o Círio pascal. Era a terceira vez que eu podia estar junto dele, tendo sido as outras duas quando o corpo ainda estava na Sala Clementina do Palácio Apostólico. As lágrimas correm porque foram criadas por Deus para serem versadas nos momentos justos. Ali me despedi daquele homem santo, com quem pude estar centenas de vezes. Conservo no meu coração a lembrança daquele profundo olhar azul, de alguém que nutriu pelos sacerdotes um amor sem medidas e que sempre olhou dentro dos nossos olhos.