O Globo, n. 31513, 17/11/2019. Rio, p. 14

Miséria atinge 652 mil pessoas no estado do Rio
Giselle Ouchana
Rafael Galdo


Onde falta quase tudo, o almoço, quando tem, pode ser arroz com feijão puro. Essa é a rotina no casebre de Belford Roxo onde mora Aparecida Matias. Raramente ela põe no fogo o que chama de “misturinha”, um pedaço de pelanca que pede no mercado ou outra carne que ganhe dos vizinhos. Em Bangu, Alessandra Alves também se deita preocupada com o que vai comer no dia seguinte. Na única refeição da quarta-feira passada, nem feijão tinha, só arroz com pão. As duas compartilham o medo da fome e de outras tantas ameaçasque rondam cer cade 652,4 mil pessoas em situação de extrema pobreza no Rio — um aumento de 47,07% em relação a cinco anos atrás. Entre 2014 e 2018, pelo menos 208,8 mil habitantes do estado — mais que toda a população de uma cidade do porte de Nova Friburgo — caíram na miséria, segundo dados da Síntese de Indicadores Sociais do IBGE, divulgados este mês. São pessoas que se viram com menos de R$ 150 por mês (ou US$ 1,90 por dia, conforme critério utilizado pela pesquisa). E, em meio a penúrias de um estado em processo de recuperação fiscal, enfrentam o desemprego e a dependência de programas sociais.

Alessandra, o marido Edinei da Silva e três filhos vivem essa aflição. Eles dividem R$ 108 mensais do Bolsa Família e o pouco de dinheiro que conseguem catando latinha e vendendo balas no acesso à Favela Vila Aliança. Há cerca de um ano emeio, Edinei perdeu o emprego de auxiliar de serviços gerais, com carteira assinada e um salário mínimo, e a sobrevivência se tornou quase um malabarismo. — Não sobra nem odinheiro da passagem para procurar trabalho. Sequer lembro a última vez que cozinhei carne em casa. A geladeira e o armário estão vazios — diz Alessandra. Ao passo que a pobreza atingia mais fluminenses, o Rio, segundo o IBGE, foi o estado em que o desemprego mais subiu no país: 138%. O índice passou de 6,3% em 2014 para 15% em 2018. Foi o fator determinante para o atual cenário, diz o pesquisador Carlos Antônio Costa Ribeiro Filho, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj: — Passamos por uma crise forte, iniciada em 2014, quando as taxas de desemprego aumentaram. Esse quadro não foi revertido, e não é possível enxergar um horizonte promissor para os próximos anos. Diante da derrocada, aumentou também o número de beneficiários do Bolsa Família no Rio: de 827,8 mil famílias, em 2014, para 875,3 mil, em 2018. Mas o pesquisador do IBGE Leonardo Athias observa que as ações do programa federal não foram suficientes para anular os efeitos da crise. Além disso, destaca, o valor atual do Bolsa Família, de R$ 89 por pessoa, não supre nem os R$ 150 que caracterizam a situação de miséria.

— É o principal programa social, mas, ao longo dos anos, não foi atualizado aponto de acompanhar os valores da linha de extrema pobreza. Enquanto isso, os mais pobres vivem nos lugares mais precários enfrentam os maiores obstáculos para manter os filhos na escola — afirma.

Já o programa Renda Melhor — uma espécie de Bolsa Família do governo estadual —foi suspenso em 2016. Hoje, afirma a Secretaria de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos, há uma crescente demanda pelos principais equipamentos de assistência social cofinanciados pelo estado, como os Centros POP, que atendem moradores de rua. Devido à recuperação fiscal, o governo admite enfrentar restrições para implementar novas iniciativas. Mas afirma ter planos como reabrir restaurantes populares e criar mais um espaço para acolher pessoas em situação de rua na Região Metropolitana. A prefeitura do Rio, que mantém o Cartão Família Carioca, não se manifestou. Na capital, o total de miseráveis passou de 118 mil, em 2014; para 147 mil, em 2018.

‘Até beber água gelada é uma peleja. Busco na casa de minha mãe’

A primeira gravidez de Rosemeire Xavier da Silva foi aos 16 anos. Ela tentou continuar os estudos e, nos intervalos das aulas, amamentava o bebê numa praça. Quando teve a segunda criança, no entanto, desistiu do esforço. Hoje, aos 33 anos e com oito “bênçãos”, como ela chama seus rebentos, aprende, cada vez mais, a difícil operação de dividir o que não há: comida.

Numa casa de zinco e tijolo à beira da linha do trem, em Japeri, o almoço da família na terça-feira passada só tinha arroz, feijão e três ovos, que Rose dividiu entre cinco filhos. Desempregada, assim como o marido, ela recebe R$ 792 do Bolsa Família. Só de cesta básica, gasta R$ 600, e não dá para duas semanas. Todas as outras necessidades ficam em último plano. A casa não tem mobília. — Até beber água gelada é uma peleja. Minha geladeira não liga. Busco gelo na casa da minha mãe.

‘Tudo que tenho em casa catei do lixo, até a geladeira’

Quando um trator derrubou a casa de Silvana Santos, numa reintegração de posse na Vila São Jorge, em junho de 2018, os sonhos dela também desmoronaram. Depois de dois anos nas ruas e de ter se livrado das drogas, aquele lar parecia uma redenção. Sob um teto, ela trabalhava como diarista e obteve um empréstimo no banco, com o qual comprou eletrodomésticos. Não deu tempo de salvar nada ao ser despejada. — Foi a ruína da minha vida, minha derrota — diz ela. Desde então, aos 43 anos, a miséria que já tinha experimentado voltou a assombrá-la. Foram meses em abrigos e acampada em frente à prefeitura do Rio. Há um ano, Silvana reconstrói tudo do zero, na ocupação Nova Canaã, com 160 moradias, em São Cristóvão. Mas ainda não recuperou o emprego. Com quatro filhos e o marido, a única renda fixa é o Bolsa Família, de R$ 170: —Tudo que tenho em casa catei do lixo, até a geladeira.

‘Às vezes, desanimo. Mas não vou desistir da vida’

Aparecida Matias, de 51 anos, e o filho, Henrique Gabriel, de 9, costumam dormir abraçados, num colchonete de espuma no chão. Eles se ajeitam no pouco espaço livre do quartinho em que moram, no Morro da Torre, região pobre de Belford Roxo. E, à volta deles, tudo remete às privações em que vivem, mas também a uma relação repleta de anseios para o futuro.

Na casa quase sem nada, a porta da geladeira está solta, não fecha mais. O forno do fogão — último eletrodoméstico que Aparecida comprou, há dez anos — não funciona: virou armário. Os dois se viram sem pia e chuveiro. No banheiro improvisado, só há um vaso sanitário e uma mangueira, com água que uma associação da comunidade cede à família algumas horas por dia.

— É onde tomamos banho, lavo a louça e a roupa — conta Aparecida, agoniada com a escassez. — Às vezes, desanimo. Mas não vou desistir da vida, não, porque tenho que cuidar do meu filho. Faz um ano que os dois se mudaram para o Morro da Torre. Com o garoto crescendo, Aparecida não queria que ele ficasse exposto aos perigos do crime no antigo bairro. No endereço atual, desempregada, ela acorda quando o sol nasce e passa a manhã atenta ao rádio para saber a hora, já que não tem relógio nem celular. É que às 11h o menino precisa ir à escola, motivo de orgulho para Aparecida.

Ela chega a se emocionar ao segurar um porta-retrato com uma foto da formatura de Henrique Gabriel no pré escolar. E seus olhos brilham ao folhear os cadernos do garoto, mesmo que ela, analfabeta, não entenda o que está escrito. — Pergunto a ele se vai ensinar a mamãe a ler — diz ela, mineira, que ainda adolescente veio para o Rio trabalhar como empregada doméstica. Sem estudo, ela tem dificuldade até para obter o Bolsa Família. Só no mês passado cadastrou-se no programa. Por enquanto, vive com a ajuda da filha mais velha e de doações: — Queria ao menos arrumar meu barraco, construir um cômodo em que coubesse uma cama.

‘Quando preciso de gás, que custa R$ 80, vou à casa de vizinhos’

Carlos Alberto Policeno nasceu com uma deficiência que o faz enxergar apenas vultos. Apesar disso, cozinha, faz bicos para sobreviver e conhece cada palmo do topo da comunidade Camarista Méier, na Zona Norte do Rio. Aos 60 anos, contudo, ele continua praticamente invisível às políticas sociais que deveriam ampará-lo. Água encanada, ele não tem em casa, apesar de velhas promessas da Cedae. Assim como seus três mil vizinhos, depende de uma nascente no alto do morro. Ele nunca teve carteira de trabalho ou emprego formal. E, quando tentou se aposentar por invalidez, devido à quase cegueira, recebeu um “não” da previdência. — Ajudaria muito, só tenho R$ 89 do Bolsa Família. Quando preciso de gás, que custa R$ 80, vou comer na casa de vizinhos. Mesmo assim, sou bom pagador. Tenho crédito em todo o comércio do morro — diz ele.

‘Desde que desisti de criar porcos, ovo passou a ser nossa única opção’

Às margens da Rodovia Rio-Teresópolis, Laudelina Castro, de 52 anos, vive com 12 filhos e 23 netos. No terreno, levantou um casebre de madeira e bambu, sem qualquer rede de saneamento. Ao lado, cultiva verduras, legumes e temperos. E é dessa horta que vem o principal sustento da família. — Quase nunca temos carne e fruta. Desde que desisti de criar porcos, ovo passou a ser nossa única opção — conta ela, que cozinha num fogão a lenha improvisado.

Assim como Laudelina, três de suas filhas também recebem o Bolsa Família, que totaliza R$ 1.748. Com a renda, prioriza a compra de produtos de higiene e limpeza e investe num sonho que está a poucos passos de onde vive: uma casa de alvenaria. A obra começou há seis meses, mas ela não conseguiu finalizar nem as paredes do primeiro cômodo.