O Globo, n. 31513, 17/11/2019. Economia, p. 29

Nem mesmo renda extra garante obra
Pedro Capetti
Henrique Gomes Batista


A restrição orçamentária que predomina entre os municípios brasileiros afeta até mesmo os que contam com recursos extras da indústria do petróleo. Levantamento feito pelo GLOBO com base em dados do Tesouro Nacional, da Firjan e da Agência Nacional do Petróleo (ANP) mostra que 14 das 20 prefeituras que mais receberam royalties e participações especiais (tributos cobrados nos campos petrolíferos mais produtivos) em 2018 gastaram menos que a média de todas as cidades do país em investimentos, como infraestrutura, novas escolas ou saneamento. Elas não conseguiram investir mais de 5,1% de sua receita total.

A situação tem piorado nos últimos anos. Em 2014, apenas oito dos 20 maiores beneficiados pelos royalties investiam abaixo da média nacional. No ano passado, essas prefeituras receberam R$ 7 bilhões do petróleo, mas investiram, em média ,4% de suas receitas. Alista tem cidades de Rio, São Paulo e Espírito Santo, que concentram a maior parte da produção de petróleo e gás do país. As compensações pagas pelas petroleiras pelo impacto da atividade são divididas entre União, estados e municípios em cujo litoral estão localizados os campos produtores.

A taxa de investimento baixa nas cidades produtoras mostra que essa riqueza, que é finita, não tem gerado um legado para a população. Em vez de projetos que possam elevar o desenvolvimento local e impulsionar alternativas econômicas ao petróleo, os prefeitos priorizam gastos correntes e expandem folhas de pagamentos. Muitos têm que pagar dívidas com bancos que já anteciparam essas receitas.

— As receitas dessas prefeituras cresceram muito até 2013, mas, com o recuo do preço do petróleo (que influencia os royalties), tiveram queda súbita. Como enrijeceram os orçamentos, contratando pessoal, ficaram sem espaço fiscal quando a arrecadação despencou e penalizaram os investimentos —avalia Rodrigo Orair, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

‘VENDER O FUTURO’

Campos dos Goyatacazes, no Norte Fluminense, chegou a ter mais de R$ 2 bilhões por a nodo petróleo. Com a queda da produção na Bacia de Campos, recebe hoje quase R$ 700 milhões, um terço de sua receita. No entanto, só 1% de tudo o que a cidade arrecadou foi para obras nos últimos dois anos. O gasto com pessoal é grande e o fundo cria dopara financiara atração de empresas acumula déficit de R $400 milhões. Muitas fecha ramas portas e foram embora sem pagar os créditos e nem gerar vagas.

Pelo menos 10% dos royalties que Campos recebe vão direto para o pagamento de empréstimos. O prefeito, Rafael Diniz (Cidadania), culpa gestões passadas pelo mau uso dos recursos, e agora se diz obrigado a “vender o futuro”:

— Diante dessa realidade, resta pouco para investir.

Para José Luis Vianna, professor da Universidade Cândido Mendes que estuda o impacto dos royalties, o Brasil ainda não conseguiu dar uma boa solução para a aplicação da riqueza gerada pelo petróleo. Nas contas dele, as cidades do Norte Fluminense receberam R $100 bilhões nas últimas duas décadas, mas seguem dependentes dessa indústria:

— Não podemos nem dizer que o Norte Fluminense investiu mal. O que vimos foi mais que uma tragédia porque a região está pior hoje.

Por outro lado, Vianna alerta que distribuir a renda do petróleo entre todos os estados e municípios não é o melhor caminho. A pulverização favoreceria ainda mais ouso dos recursos nos gastos correntes.

No ano que vem, o Supremo Tribunal Federal (STF) julga a constitucionalidade de uma lei que redistribui royalties para todos os entes da federação, suspensa por liminar.

— Dividir igualitariamente daria um alívio temporário às contas públicas, sem criar um legado. Diluiria recursos importantes, que, juntos, poderiam fomentar uma transformação econômica — diz Vianna. — Regiões produtoras no mundo como a Noruega ou o Alasca (estado dos EUA) criaram fundos e usam os recursos para um planejamento estratégico de longo prazo.

Maricá, cidade que mais recebe royalties no Estado do Rio (R$ 1,514 bilhão), conta com investimentos acima da média nacional nos últimos seis anos. Em 2018, foram 10,5% da receita. Apenas 4,5% da cidade têm saneamento e 35%, distribuição de água. Os investimentos buscam expandir esses indicadores para 70% em dois anos.

O município tem trabalhado para diminuir de royalties. Em 2018, mais de 70% da receita vinham do petróleo. A cidade destina 5% desses recursos a um fundo soberano. O objetivo é atrair investidores em projetos de Parceria Público Privada (PPP) em saúde, educação e infraestrutura para tornar a cidade um polo tecnológico e industrial no futuro. A expectativa é que o fundo acumule R$ 3 bilhões até 2030.

Niterói, segunda maior recebedora de royalties do país, investiu acima da média nacional por quatro anos, em projetos de saneamento e mobilidade, mas resolveu pisar no freio para aperfeiçoar os planos. Em 2018, destinou 5% das receitas para investimentos. Segundo o prefeito Rodrigo Neves(PDT ), a prioridade foi quitar dívidas e a criação de um fundo para definir melhor a aplicação dos royalties:

— Essa poupança vai permitir que Niterói nas próximas décadas mantenha a sua condição de estabilidade, mesmo na crise. Queremos ter R$ 300 milhões até o fim de 2020. Municípios do litoral norte paulista, como Ilhabela, São Sebastião, Caraguatatuba e Ubatuba, também planejam uma forma diferente de investira rendado petróleo. Eles criaram um consórcio par apensar conjuntamente políticas e projetos para o desenvolvimento da região, que começa a funcionar neste mês. Com o deslocamento da produção para o pré-sal da Bacia de Santos, essas cidades tendem a ver sua participação nos royalties subir nos próximos anos.

INSEGURANÇA

Situação parecida com a de Saquarema, na Região dos Lagos, que será acida demais beneficiada pela produção dos dois blocos do pré-sal vendidos no mega leilão, Itapu e Búzios. Em 2018, a cidade já tirou do petróleo 25% de suas receitas, mas só destinou 4,9% delas para obras. Sofre com buracos nas ruas e falta de manutenção de praças e da orla.

A secretária de Planejamento, Daniele Guedes, diz que a prefeitura tem evitado fazer aportes volumosos em prazo coma incerteza gerada pelo julgamento pendente no STF:

—Temos preocupação com a austeridade. Não ordeno despesa sem receita no caixa. O te morde quedada arrecadação como julgamento é real.

Para Jonathan Goulart, gerente de estudos econômicos da Firjan, o impasse no STF é mais um sinal de alerta:

— As prefeituras utilizam essas receitas não recorrentes, que têm volatilidade grande, e muitas vezes são surpreendidas. É preciso equilíbrio fiscal para não ter dependência. Para Ora ir, do Ipea, independentemente do debate no STF, não há mais tempo — e nem dinheiro — a perder. É preciso encontrar um a forma eficiente de canalizara renda do petróleo para projetos que façam diferença no futuro dessas cidades:

— O petróleo vai acabar.

“Não podemos nem dizer que o Norte Fluminense investiu mal. O que vimos foi mais que uma tragédia”

José Luis Vianna, professor da Universidade Cândido Mendes