O Globo, n. 31541, 15/12/2019. País, p. 14-15

Maranhão tem um terço de crimes contra índios

Daniel Biasetto
Gustavo Schmitt


Epicentro da escalada de violência contra indígenas, com quatro mortes em menos de um mês e meio, o Maranhão registrou o maior número de assassinatos de índios em conflitos por terra da última década. Dos 68 óbitos registrados em disputas por território em todo o país desde 2009, quase um terço (19) ocorreu no estado nordestino, segundo dados apurados pela Comissão Pastoral da Terra. Ontem, a polícia do Maranhão prendeu quatro suspeitos pela morte de Erisvan Guajajara, de 15 anos, na sexta-feira, em Amarante do Maranhão. Três municípios — Amarante do Maranhão, Grajaú e Jenipapo dos Vieiras — concentram mais de 70% dos casos (14). Essas cidades estão localizadas entre as Terras Indígenas Araribóia e Cana Brava, onde foram registradas as últimas mortes de indígenas. Já homologada, a Terra Indígena Araribóia — habitada pelas etnias awá guajá, awá isolados e guajajara — tem 413 mil hectares e 5.300 índios. A Cana Brava tem 4.500 moradores em 137 mil hectares. As duas áreas são as mais cobiçadas por invasores, madeireiros e caçadores ilegais.

O clima é tenso na região desde o assassinato de Paulino Guajajara, do grupo de fiscalização Guardiões da Floresta, em 1º de novembro. Ele foi morto a tiros numa emboscada. A coordenação regional da Fundação Nacional do Índio (Funai) no Maranhão fica em Imperatriz, mas a Terra Indígena Araribóia tem dois chefes das chamadas coordenações técnicas locais que atuam sozinhos. Regularmente, há atuação da Frente de Proteção Etnoambiental Awa, que faz apenas missões pontuais.

O coordenador regional da Funai, Guaraci Mendes, não quis comentar os episódios de violência. O GLOBO apurou que ele foi proibido de falar com a imprensa. A presença da Polícia Federal na região para investigar o caso de Paulino — ainda sem conclusão —não impediu que mais três assassinatos fossem cometidos. Sobre a morte de Erisvan Guajajara na sexta-feira, a Funai disse, em nota, que a polícia descartou motivações de crimes de ódio, disputa por madeira ou terra. Investigadores ouvidos pela reportagem, entretanto, não afastam a hipótese de que a morte esteja relacionada à defesa do território indígena.

No último dia 7, outros dois indígenas da etnia Guajajara — Firmino Silvino Guajajara e Raimundo Bernice Guajajara — foram mortos e outros dois ficaram feridos após sofrerem um atentado a tiros no município de Jenipapo dos Vieiras, a 506 quilômetros da capital maranhense de São Luís.

Na semana passada, o Ministério da Justiça enviou a Força Nacional para dar segurança aos índios e servidores públicos na Cana Brava. Apesar disso, as ameaças aos índios continuam: hoje 24 lideranças indígenas do Maranhão estão em programas de proteção.

Rotina de medo

Uma liderança da Araribóia, que falou sob condição de anonimato, relatou a rotina de tensão da etnia guajajara para evitar com que a terra seja invadida por madeireiros. Ele frisou a importância de reforço na segurança das estradas que dão acesso às terras.

— As ameaças têm aumentado. Sabemos que a nossa cabeça tem valor. E que podemos ser mortos. Pedimos medidas protetivas e mais segurança, mas ainda não veio ajuda — afirmou o líder guajajara, que contou que já escapou de emboscadas recentemente:

— Há alguns meses, pistoleiros estavam me esperando encapuzados na estrada que dá acesso à Terra Araribóia, mas não me reconheceram. No outro caso, semanas atrás, a espingarda não disparou e consegui fugir.

O assessor jurídico da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), Luís Antônio Pedrosa, relaciona os conflitos ao descaso do poder público no desenvolvimento da região. Ele explica que, quando as terras dos guajajaras foram reconhecidas nas proximidades da BR-226, foram picotadas, intercaladas em vários pontos por pressão de fazendeiros que detêm a força política e econômica.

— O território desse povo tem em suas bordas um corredor indígena que liga o Alto Turiassu até Araribóia, passando pela BR-226, onde transitam os segmentos interessados na madeira e onde funcionam as madeireiras, uma área rica em materiais cobiçados.

Um dos pontos que fontes dos órgãos de inteligência destacam como sensível nos conflitos dentro das terras indígenas é a baixa taxa de esclarecimento das investigações sobre as mortes. Um caso que chama a atenção é a morte do indígena Eusébio Kaapor, em abril de 2015, no município de Santa Luzia do Paruá, cujo desmatamento da cobertura florestal chega a 95%, segundo dados do Deter, do governo federal. Familiares do indígena disseram no inquérito que Eusébio foi morto a tiros por invasores que exploram madeira ilegal.

Segundo o advogado Diogo Cabral, que acompanha o caso, mesmo após quatro anos e sete meses, a investigação não virou processo criminal. Questionada, a PF não comentou. Para a antropóloga Manuela Ligeti Carneiro da Cunha, professora titular aposentada de Antropologia na Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Chicago, o que mais preocupa agora é a postura do governo em relação aos crimes: —Há um discurso oficial e iniciativas expressamente dadas para atacar não só o meio ambiente, mas também os povos indígenas. Esses discursos, essas ações e essas omissões são sem precedentes na história recente do Brasil.

“As ameças têm aumentado. Sabemos que a nossa cabeça tem valor. E que podemos ser mortos. Pedimos medidas protetivas e mais segurança, mas ainda não veio ajuda. Há alguns meses, pistoleiros estavam me esperando encapuzados na estrada” — Líder Guajajara, indígena que concedeu entrevista sob condição de anonimato.

Tráfico no estado pode explicar mortes de índios

A onda de violência contra índios no Maranhão levou o governo do estado a prometer reforços nas ações da força-tarefa estadual criada em novembro, após o primeiro ataque, para proteger territórios indígenas. Indicado como porta-voz sobre o tema pelo governador Flávio Dino, o secretário de Direitos Humanos, Francisco Gonçalves, afirma que o tráfico de drogas e o avanço de organizações criminosas nesses territórios são fatores que explicam os recentes ataques — outras possibilidades são a ação de grileiros e exploração ilegal de madeira. Para evitar que a situação se agrave, o governo estadual pretende promover operações surpresa nos arredores das terras indígenas, com foco no combate ao crime organizado e aos ilícitos ambientais. No interior desses territórios, somente a Polícia Federal (PF) está autorizada a atuar.

— Nossa resposta foi criar um força-tarefa composta pela Polícia Militar, Polícia Civil e Corpo de Bombeiros. Porém, dentro do território indígena não podemos nos responsabilizar. Vamos agir nos arredores. Temos todo um planejamento feito para atuar naquilo que nos compete. Nós queremos a ajuda do governo federal, mas se não recebermos ajuda, faremos a nossa parte — diz Gonçalves.

Aproximação

O secretário afirma que membros da Fundação Nacional do Índio (Funai) foram protegidos pelas estruturas do governo do estado no início do ano, quando trabalhavam para conter invasões de criadores de gado em territórios ocupados por indígenas da etnia Awá. — Utilizamos o Batalhão de Policiamento Ambiental para isso, quando, na verdade, deveria ser um trabalho do governo federal — lembra Gonçalves.

O assessor jurídico da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH), Luís Antônio Pedrosa, afirma que traficantes de maconha tentam se aproveitar de territórios onde é feito o cultivo da erva para uso medicinal e ritualístico.

— Traficantes têm se aproximado dos Guajajara, uma vez que eles fazem o plantio tradicional da maconha e tentam convencê-los a venderem sua produção no intuito de repassar no tráfico a preços maiores. Alguns até adotam a estratégia de se casarem com indígenas para ficarem mais próximos às aldeias e assim comprar o produto da agricultura familiar, de diversos plantios, em grande quantidade — diz Pedrosa, que completa:

— Muito da violência tem como pano de fundo o tráfico de drogas por resistência dos índios.

Eventuais associações entre traficantes e índios preocupam governo maranhense Titular do ofício de defesa dos direitos indígenas, o procurador da República no Maranhão Hilton Melo afirma que o Ministério Público Federal (MPF) atua para evitar que o organizações cooptem indígenas e adotou cautela ao tratar da possível relação entre as mortes e o tráfico.

— Esse assunto já surgiu de forma tangente. Normalmente são casos de um não indígena que se junta com um índio e tenta usar dessa relação para propósitos criminosos — afirmou Melo, que desconhece a compra e venda de drogas entre índios e traficantes. Questionado sobre criminosos em terras indígenas, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, disse que acompanha o caso e tomará providência para reduzir as mortes de índios na região.

— O Ministério enviou a PF para investigar e a Força Nacional para protegera região — disse Moro.