O Globo, n. 31513, 17/11/2019. Mundo, p. 37

Continente tem uma queda de presidente a cada 10 meses
Dimitrius Dantas
Guilherme Caetano


A queda do ex-presidente da Bolívia Evo Morales adicionou mais uma na extensa lista de sul-americanos que, por razões políticas, não concluíram o mandato. Nos últimos cem anos, segundo levantamento do GLOBO, um presidente a cada 10 meses não terminou o mandato na região. Entre 1912 e hoje, 114 presidentes tiveram que abandonar seus cargos na América do Sul. Esse número leva em conta apenas os governantes que saíram por motivos políticos — ou seja, os que morreram por causas naturais ou acidentes não estão incluídos.

O levantamento considerou os 12 países da América do Sul: Brasil, Argentina, Uruguai, Paraguai, Chile, Colômbia, Bolívia, Venezuela, Equador, Peru, Guiana e Suriname. O número demonstra, entre outros fatores, a dificuldade na região em alcançar a estabilidade política necessária para o desenvolvimento econômico. A Bolívia, que no último fim de semana presenciou mais um rompimento institucional, é o país mais instável do continente. Entre 1920 e 2019, foram 24 presidentes que não conseguiram chegar ao fim de seus governos, quatro deles apenas neste século: Hugo Banzer, Gonzalo Sánchez de Lozada, Carlos Mesa e o próprio Morales.

O ex-presidente boliviano deixou o país rumo ao México na madrugada da última terça-feira. O governo de Andrés Manuel López Obrador concedeu asilo político a Morales após ele renunciar pressionado por protestos e pelas Forças Armadas. O ex-presidente afirma que foi alvo de um golpe, enquanto adversários o acusam de fraudar as eleições que o levariam a um quarto mandato mesmo após perder um plebiscito que permitiria a reeleição indefinida.

Sem coincidências

Existem diversos motivos para as frequentes mudanças de governo, segundo Pedro Henrique Pedreira Campos, professor de História da UFRRJ. Ele diz haver realidades locais e históricas específicas que ajudam a entender cada caso, mas que é “claramente perceptível” a existência de ondas. Teriam sido elas responsáveis por fazer surgir certos movimentos políticos comuns nos diferentes governos da região, incluindo golpes de Estado.

— Logo após a crise de 1929, vários governos foram modificados no continente, muitas vezes por golpes, como no Brasil em 1930. De forma similar, após a Revolução em Cuba em 1959 acontece uma onda de golpes com participação das Forças Armadas em uma via contrarrevolucionária nas décadas de 1960 e 1970. Nos anos de 1980, tivemos a redemocratização como uma espécie de onda no Cone Sul, seguida por uma leva de governos neoliberais que aplicaram políticas como a dolarização das moedas nacionais — explica o professor.

Campos afirma que, além dos movimentos descritos, a “onda rosa”, com o advento de governos progressistas na virada do século XXI, e a atual chegada de governos de direita e extrema direita contrariam a ideia de uma coincidência.

— A mudança violenta de governos e os golpes de Estado muitas vezes contam com um elemento de interferência externa, em especial dos países centrais. Isso não explica todos os golpes nem configura necessariamente a força decisiva nas derrubadas de governo, mas é perceptível como muitas vezes ações de países como os EUA estiveram envolvidos em golpes, tentativas de deposição de governantes e mudanças de regime na região.

Assassinato e impeachment

Um dos maiores símbolos do populismo e da instabilidade política foi o equatoriano José Maria Velasco Ibarra. Entre as décadas de 30 e 60, foi presidente cinco vezes, mas apenas em uma delas concluiu o mandato. Transitando do apoio de conservadores no início, foi indo para a esquerda, criticando oligarcas e defendendo reformas radicais na economia.

A popularidade com os setores mais pobres se refletia nas desavenças que tinha com a elite e com as Forças Armadas. Em um dos mandatos, durou apenas dois meses. Já na década de 1970, foi convidado para uma sexta tentativa de chegar à Presidência. Dessa vez, abriu mão.

Outro caso emblemático aconteceu no Paraguai, onde as desavenças políticas levaram ao assassinato do vice-presidente Luis María Argaña, em 1999. A crise tem origem na condenação à prisão do general Lino Oviedo, em 1998, por tentativa de golpe contra Juan Carlos Wasmosy, dois anos antes. Com Oviedo preso, o também colorado Raúl Cubas assume a candidatura à Presidência e vence.

Raúl, eleito, liberta o aliado, mas a atitude gera protestos nas ruas, culminando na morte de Argaña, ferrenho opositor de Oviedo. O episódio terminou com a renúncia de Cubas.

O Brasil contribui com oito presidentes que não conseguiram terminar seus mandatos. Por outro lado, desde a reintrodução da democracia, em 1988, os dois presidentes que deixaram o cargo foram alvos de processos de impeachment — medida legal para a retirada de um mandatário: Fernando Collor, em 1992, e Dilma Rousseff, em 2016. Como comparação, a Argentina teve 15 presidentes que renunciaram ou foram destituídos nos últimos cem anos — o último, em 2001, foi Fernando de la Rúa, que deixou o cargo em meio aos protestos pela crise econômica que atingiu o país.

A lista também demonstra que, em determinados períodos da História, praticamente todos os países do continente foram tomados pela instabilidade política. A partir da década de 1930, por exemplo. É nesse intervalo que Getúlio Vargas chega ao poder após o Washington Luís ser forçado a renunciar. Em 1937, Vargas instituiria o chamado Estado Novo, ditadura que o manteve no cargo por mais oito anos. Ele volta ao poder, democraticamente, em 1950, e comete suicídio em 1954. Na Argentina, outro político do chamado populismo, Juan Domingos Perón, se elege presidente em 1946 e é deposto em 1955.

Entre o final da década de 1960 e a de 70, no quadro da Guerra Fria, militares tomaram o poder em países como Brasil, Uruguai, Argentina, Chile, Equador e Bolívia. As ditaduras chegaram a se coordenar em atividades conjuntas como a Operação Condor, que atuava na repressão a adversários dos regimes.

No entanto, mesmo a reintrodução da democracia a partir da década de 1980 não significou estabilidade política — boa parte dos países teve pelo menos duas crises que levaram à queda de presidentes. Curiosamente, um dos mais instáveis, a Venezuela, se manteve sob comando do chavismo nos últimos 20 anos, resistindo a diferentes tentativas da oposição de retomar o poder.