Correio Braziliense, n. 21381, 30/09/2021. Política, p. 6 
 
O machismo é suprapartidário 

Entrevista: Tabata Amaral 
 
 
Recém filiada ao Partido Socialista Brasileiro, a deputada federal Tabata Amaral acredita que a democracia brasileira só alcançará um grau de maturidade quando divergências políticas não se traduzirem em manifestações de ódio e violência, e no momento que mulheres se sentirem seguras para expressar suas ideias. Desde que chegou ao Congresso Nacional, Tabata Amaral é alvo de ofensas, provocações e ameaças não somente em razão das convicções políticas. “Incomodo muito por ser uma mulher jovem”, afirma a parlamentar. Recentemente, Tabata foi alvo da violência do ator José de Abreu, que endossou nas redes sociais um post de um internauta que gostaria de socar a deputada “até ser preso”. 

Mais do que reparar esse crime na Justiça, Tabata Amaral propõe uma reflexão: “Estamos prontos para colocar um basta em toda essa violência? Para repudiar toda forma de violência e ódio sem olhar quem é o alvo e o agressor? Porque eu vi muitas pessoas que dizem defender a luta contra o machismo, trabalhar para uma sociedade menos desigual, que se calaram”. E vai além, nesta entrevista ao CB.Poder, uma parceria do Correio Braziliense e da TV Brasília. “O machismo é estrutural e suprapartidário, ele se manifesta ao longo de todo espectro ideológico. Pra mim, a luta para que possamos atuar de forma segura na política não se restringe às mulheres com quem eu concordo; abarca para todas as mulheres”, defende. Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista. 

Que lição podemos tirar da agressão que a senhora sofreu de José de Abreu? 

Uma reflexão que sempre trago é que eu incomodo quando aponto a corrupção, as práticas equivocadas que existem na política, quando trago uma visão de mundo diferente. Mas infelizmente, também incomodo muito por ser uma mulher jovem. Na cabeça de algumas pessoas que estão acostumadas a mandar, é um desacato quando eu discordo delas e defendo minhas posições com coragem e firmeza. Talvez se surpreendam ao ver uma jovem mulher que vem da periferia, como venho, defender suas ideias com tanta convicção. É importante ressaltar que foi completamente absurdo que o ator José de Abreu tenha compartilhado uma ameaça de agressão física a mim, apenas por discordar dos meus pensamentos. Mas essa não é uma ação isolada; há dois anos venho recebendo todo tipo de ameaça e ataque. Nada disso vai fazer com que eu pare, vou seguir lutando de cabeça erguida. 

Não se trata, portanto, de um fato isolado. 

Precisamos fazer uma reflexão como sociedade: se um ator se sente confortável em compartilhar uma ameaça de agressão física, é porque nós, como sociedade, estamos tolerando a intolerância. Então a lição que fica pra mim é que temos um longo caminho pela frente para que a política seja um lugar seguro física e psicologicamente para as mulheres. Também precisamos dar um basta nessa espiral de ódio e violência que estamos vivendo. Não existe democracia saudável onde a discordância seja respondida com ódio. Não existe democracia possível quando adversários políticos são tratados dessa forma por disputarem espaço de poder ou terem uma visão diferente. 

Concorda com a ideia de que existe um machismo estrutural na sociedade brasileira? Como combater isso? 

Concordo 100% com essa afirmação. Infelizmente o machismo é estrutural. Isso quer dizer que ele se manifesta nas menores e maiores coisas ao mesmo tempo, e que mulheres inclusive, muitas vezes, reproduzem o machismo sem se dar conta. Então obviamente é importante a gente denunciar que incitação à violência é crime. Sempre que recebo um ataque desse nível, tomo as medidas necessárias, porque estamos falando da integridade física e segurança das pessoas. É importante entender também que só transformamos isso com uma mudança cultural. Tem muita coisa errada que leva uma pessoa a achar que pode compartilhar uma ameaça de agressão física em um perfil com sua foto e nome verdadeiro. Na hora que essa pessoa não sofre nenhum tipo de sanção, seja no meio de comunicação onde trabalha, seja nas lideranças políticas às quais essa pessoa é ligada, como sociedade estamos dizendo que está tudo bem. Você pode cometer esse crime, ameaçar uma mulher de agressão física que você não vai perder apoio nem espaço. 

É possível mudar essa realidade? 

A provocação que trago é: estamos prontos para colocar um basta em toda essa violência? Para repudiar toda forma de violência e ódio sem olhar quem é o alvo e o agressor? Porque eu vi muitas pessoas que dizem defender a luta contra machismo, trabalhar para uma sociedade menos desigual, que se calaram. Temos que nos posicionar toda vez que isso acontece. Claro que vamos encaminhar à Justiça, porque se trata de um crime. Mas não dá pra achar que a gente vai fazer com que a política brasileira seja um lugar seguro para as mulheres atuarem se a gente não começar a cobrar, tanto as pessoas que se portam assim, mas também aquelas que se silenciam por conveniência. O machismo é estrutural e suprapartidário, ele se manifesta ao longo de todo espectro ideológico. Pra mim, a luta para que possamos atuar de forma segura na política não se restringe às mulheres com quem eu concordo; abarca todas as mulheres, porque nós somos diversas também em nossos posicionamentos e visões de mundo. Uma democracia forte é sobre isso, sobre pessoas que pensam diferente poderem se posicionar sem serem atacadas por isso. 

O problema não acontece apenas com a senhora, nem só nas redes sociais. O desrespeito e a intolerância ocorrem ao vivo e em cores. A senadora Simone Tebet foi desrespeitada em plena CPI. A violência de gênero está disseminada na política? 

Com certeza. Marina Silva, Dilma Rousseff, Simone Tebet, Marília Petrone e Joice Hasselmann são mulheres que vêm sendo punidas pura e simplesmente por se posicionarem. Quero deixar algo bem claro. No momento que me posiciono politicamente, tenho de estar aberta a receber críticas, a enfrentar discordância com diálogos, debates e argumentos. O meu ponto aqui não é quem discorda das minhas ideias e critica minha atuação; é a pessoa que ameaça minha integridade física quando discorda de mim. A discordância é boa e saudável para a democracia; o que não cabe é, cada vez que alguém discorde de mim, eu seja chamada de burra. 

Discordar, talvez. Ofender, jamais. 

Tive oportunidade de escrever um artigo em que listei algumas das ofensas que recebo diariamente. Me chamam de burra; dizem que tem algum homem comandando meus pensamentos, como se eu não fosse inteligente o bastante para tomar minhas próprias decisões. Falam da minha vida pessoal, da minha aparência, me enviam ameaças fortes de agressão física e pessoal. Então eu separo as duas coisas. Aqui eu estou apontando que, quando alguém discorda de uma mulher que teve coragem de se posicionar, vem muita violência e ódio junto, e é isso que a gente tem que combater. Porque sabe qual o resultado disso? Muitas mulheres deixam de disputar a eleição, por não quererem passar por essas situações, e é o Brasil que perde com isso. A gente perde como país quando temos as mulheres como mais da metade dos filiados políticos e apenas 15% do Congresso sendo representado por deputadas e senadoras. 

O problema também existe na estrutura partidária. A senhora passou por isso quando mudou de legenda. A intolerância também contamina os partidos? 

Sua pergunta é fundamental. Aqui eu falo um pouco como deputada e cidadã, mas principalmente como cientista política, que é a minha formação. Os partidos são fundamentais para nossa democracia, são eles que determinam quais candidatos estarão à disposição para que a população possa ouvir suas ideias. Dito isso, a leitura que faço é de que, em 2013, as pessoas foram às ruas, em um primeiro momento, de forma muito suprapartidária, para dizer basta. Mas eu acho que os partidos, salvo exceções, não entenderam o recado das ruas, de que a sociedade só vai acreditar na democracia, quando os partidos se renovarem. Minha decisão de me filiar ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) veio junto com essa reflexão. O PSB passa agora por uma autorreforma que está discutindo não só a cartilha ideológica e pilares do partido, mas também o seu funcionamento interno. Não dá para acreditar que o mundo está passando por uma revolução tecnológica, mas que os partidos não vão mudar. Os partidos são essenciais, eu acredito neles. Mas, de novo, a população quer participar, as coisas mudaram. 

Por que a senhora acredita que as coisas mudaram? 

Alguns anos atrás, uma mulher jovem vinda da periferia, como eu, jamais teria vez e voz na política. Isso está mudando. Falta os partidos se adaptarem, e acho que o caminho passa por isso. Precisamos de partidos mais democráticos, que ouvem seus filiados, sem donos, com número máximo de mandatos para que os dirigentes possam assumir. Precisamos de partidos mais inclusivos, com mais mulheres e negros em posições de dirigentes estaduais, nacionais e municipais. E por fim, de partidos que estejam comprometidos com a ética. Esses são três pilares fundamentais para que as legendas partidárias possam se reconectar com a população e eu espero poder contribuir com essa construção dentro do PSB. 

Existem instrumentos legais para combater a violência política de gênero? 

Conseguimos aprovar na Câmara e Senado uma lei que tipifica a violência política de gênero, quando a violência é utilizada para coagir uma mulher no contexto político. Infelizmente o nosso problema, assim como com a Lei Maria da Penha, é a sua implementação. E aí a leitura que eu faço, até com um ponto de vista até mais pessoal, é de que a Justiça ainda tem muita dificuldade de lidar com esse tipo de crime e situação. Volto novamente à mudança cultural. Já existe uma lei que tipifica violência política de gênero. É importante, agora, que os tribunais estejam aptos e preparados para lidarem com essa questão. E aí trago uma provocação. Enquanto não tivermos mais mulheres na política e no Judiciário, ainda vamos patinar muito com essa questão. 

Por que diz isso? 

Sei que existem homens incríveis, que são aliados e também precisam estar nessa luta contra o machismo. Mas eu sinto uma enorme diferença de como uma mulher e um homem lidam com essa temática. Tenho a honra de ir ao Congresso com o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), o deputado Professor Israel (PV-DF), com o deputado Felipe Rigoni (PSB-ES), que são parceiros de luta e se posicionam de forma firme contra o machismo. Mas é importante entendermos que ter mais mulheres nesse espaço de poder é fundamental para que possamos botar um fim em tanta violência. 

A senhora é autora do projeto de lei, aprovado na Câmara e no Senado, que trata da saúde menstrual. Por que esse assunto é tão importante? 

Na verdade foi um conjunto de projetos de combate à pobreza menstrual, dois deles de minha autoria. Se esse conjunto de mulheres virar lei, vai impactar 6 milhões de mulheres. Por que temos de falar sobre a pobreza menstrual? Hoje temos dados extremamente assustadores: a cada quatro estudantes, uma já faltou às aulas durante a menstruação. Nossas meninas perdem até um mês e meio de aula por ano por não ter recursos para comprar absorvente. Quando apresentei esse projeto, ele foi recebido com muito ódio, parecido ao que a gente está conversando aqui. Mas a verdade é que essa discussão avançou muito no último ano e meio. 

A sociedade acordou para o problema? 

Junto com todo apoio que recebi de alunas, pais e educadores, consegui unir esforços com vários governadores, prefeitos e secretários. Hoje temos, não só esse projeto prestes a virar lei federal, mas também vários municípios e estados com programas robustos de distribuição de absorventes em escolas públicas e formação sobre o tema da menstruação, que infelizmente ainda é um tabu. São Paulo (capital e estado), Recife, Maranhão e Rio de Janeiro são alguns exemplos de municípios e estados que estão abraçando essa causa. Como sociedade, conseguimos enfrentar um tabu como esse, avançar, fazer um debate honesto. E acho que isso também mostra a importância de termos mais mulheres fazendo políticas públicas. A única razão pela qual isso não havia sido tema de um projeto de lei até 2021 é porque, infelizmente, as mulheres que mais são afetadas por isso normalmente estão bem distantes da política. 

É um exemplo de política inclusiva, então. 

Sim. É preciso dizer, nesse sentido, que a luta contra o machismo não pode ser apenas das mulheres; também é dos homens. Quando tivermos uma sociedade mais inclusiva e justa, teremos um lugar melhor para homens e mulheres, meninos e meninas. Tem uma coisa à qual eu me refiro muito é o tal do “diploma de realidade”, uma das razões pelo qual lutamos para que a política seja mais inclusiva. Éé porque faz diferença ter o diploma de realidade de quem já pegou ônibus lotado, dependeu do SUS a vida inteira, de quem foi aluno de escola pública. É claro que temos que olhar para estudos, ouvir especialistas, olhar para os números. Mas também temos que colocar as pessoas no centro para tomarem as decisões sobre as coisas que vão impactá-las no dia a dia. 

A participação política é uma consequência direta do acesso à educação. Como avalia o atual momento? 

Aqui eu trago meu depoimento pessoal. Nasci e cresci em uma ocupação na periferia de São Paulo. Sou filha de nordestinos que vieram para São Paulo em busca de oportunidades, mas infelizmente só conseguiram lutar por essas oportunidades para seus filhos. Enquanto aluna de escola pública que fui, raramente me deparava com discussões sobre faculdade, profissão. Como meu pai era dependente químico, me lembro de ouvir diversas vezes “Você e seu irmão vão ser drogados igual seu pai”. Não me lembro das pessoas me dizerem que eu podia fazer o que eu quisesse, que poderia fazer faculdade e ter uma profissão. Foi por causa da educação, da Olimpíada Brasileira de Matemática de Escolas Públicas —uma política pública maravilhosa, que impacta milhões de brasileiros todos os anos — que eu pude ganhar uma bolsa de estudos em uma escola particular, aprender inglês e fazer faculdade. Se não fossem essas oportunidades e meus professores, com certeza não estaria falando com vocês. Mas infelizmente a minha história é aquela exceção que fala da regra. Tive muita sorte, vindo de onde eu vim, de conseguir estudar. 

*Estagiário sob supervisão de Carlos Alexandre de Souza 

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