Título: Eles só conhecem dia de índio
Autor: Augusto Nunes
Fonte: Jornal do Brasil, 03/04/2005, Sete dias, p. A16

Horas antes do fim do prazo legal (¿Aos 44 do segundo tempo¿, diria o próprio Lula), o presidente da República assinou o decreto que garante a remanescentes de tribos guaranis a posse definitiva de uma reserva em Mato Grosso. Menos mal para os índios, fustigados por invasores cada vez mais gananciosos, cada vez mais ferozes. Muito bom para Lula, convalescente do relatório divulgado na véspera pela Anistia Internacional. O documento trata da questão indígena no Brasil. É uma leitura desconfortável para Lula e companheiros do PT. Altos ou baixos, todos sempre consideraram a entidade acima de qualquer suspeita. É tarde para tentar descredenciá-la. ¿Os povos indígenas parecem estar bem abaixo na lista de prioridades federais¿, registra o relatório. ¿Passados mais de dois anos, não há sinais de que o governo desenvolveu uma estratégia coerente para tentar resolver os diversos problemas enfrentados pelos índios¿, afirma outro trecho. O título do documento, aliás, prenuncia o tom do texto: ¿Estrangeiros no nosso próprio país¿.

Se redigido por algum índio, esse ¿nosso¿ no título faz sentido. Se é obra de branco, deve ser expurgado. O Brasil foi dos índios por milhares de anos. A troca de dono começou com a chegada de caravelas enviadas por caciques usurpadores, chefes de tribos obcecados pela conquista.

A assinatura de Lula deverá abrandar, ao menos por algum tempo, a gula de fazendeiros que reivindicavam fatias enormes da reserva com um argumento curioso: queriam de volta o que fora deles. Parece piada. Talvez o Brasil seja uma grande piada.

Pena que ainda não haja, espalhados pelo país, advogados índios bons de serviço, dispostos a lutar com armas de efeito moral, frágeis na prática mas muito fascinantes.

Que tal confrontar nosso plácido ministro da Justiça com ações baseadas no uti possidetis, princípio jurídico consolidado quase 500 anos antes de Cristo? Dele derivou o direito de usucapião, que garante a posse da terra a quem a tenha usado por determinado período de tempo.

O argumento só espera por juristas nascidos nas selvas, que reivindicariam a devolução de todo o Brasil aos antigos donos. Os índios.

A idéia pode ser enriquecida com a renúncia à retomada do lugar onde hoje existe Brasília. A ilha da fantasia seria promovida a nação independente. Ali permaneceriam, sem direito a atravessar a fronteira, todos os pais da pátria abrigados nos Três Poderes, todos os assessores, todo o pessoal do Incra, toda a turma da Funai. Sobretudo a turma da Funai, que ousou contestar o relatório: com Lula, garante, a vida nas aldeias só melhorou.

Jamais saberão dessa ótima notícia as crianças que morreram ou estão morrendo de fome nas aldeias em Dourados. Nem os remanescentes guaranis que, adultos, são infantilizados pela bebida, expostos à corrupção inoculada pelos brancos. Mas a sigla que no passado mereceu algum respeito já não engana quem é do ramo, caso dos especialistas da Anistia Internacional. Hoje, a Funai é a Febem das malocas. Não recruta indigenistas ou sertanistas, é avessa a técnicos eficazes. Prefere arranjar emprego para companheiros sem serviço.

Os índios dependem do comovente desprendimento de figuras como Zelik Trajber, único pediatra da reserva de Dourados. Polonês naturalizado brasileiro, formado em Cuba, ele enfrenta teimosamente a falta de medicamentos, de assistentes, até de dinheiro: o salário de R$ 5.500 chega invariavelmente atrasado. ¿O homem branco, sem dialogar com os índios, decreta de cima para baixo ações mirabolantes que nunca funcionam¿, resume. Na raiz do drama, insiste Trajber, está o problema da terra. ¿As tribos precisam de espaços maiores para viver com tranqüilidade e preservar valores ancestrais¿, diz. ¿Os índios simplesmente não cabem nas minúsculas reservas onde estão aglomerados. É muito fácil culpá-los.¿

O extermínio começou há mais de 500 anos. Sobram evidências de que não será interrompido pelo governo do presidente Lula.