O Estado de S. Paulo, n. 46880, 23/02/2022. Internacional, p. A14

EUA e OTAN não são inocentes na Ucrânia

Thomas L.Friedman


Quando eclode um conflito de grandes proporções como o da Ucrânia, os jornalistas sempre se perguntam: "Onde devo me posicionar?" Kiev? Moscou? Washington? O único lugar em que poderíamos estar para entender essa guerra é dentro da cabeça do presidente russo, Vladimir Putin. Ele é o mais poderoso e irrefreável líder russo desde Stalin, e o momento escolhido para essa guerra é um produto das ambições, estratégias e queixas dele.

Mas, dito tudo isso, os EUA não são exatamente inocentes defensores da paz. Como assim? Putin enxerga a ambição da Ucrânia de abandonar sua esfera de influência como uma perda estratégica e uma humilhação pessoal e nacional. No seu discurso de segunda feira, Putin literalmente disse que a Ucrânia não pode reivindicar independência, sendo em vez disso parte integral da Rússia. E é por isso que a investida de Putin contra o governo livremente eleito da Ucrânia dá a impressão de ser o equivalente geopolítico de um assassinato em defesa da honra.

Putin está basicamente dizendo aos ucranianos: "Vocês se apaixonaram pelo sujeito errado. Não sairão dessa com a integração à UE nem à Otan. E se eu tiver de golpear seu governo até a morte e arrastar vocês para casa, farei isso".

Trata-se de um recado feio e visceral. Ainda assim, temos aqui um contexto que é relevante. O apego de Putin à Ucrânia não é apenas uma questão de nacionalismo místico.

Brasas. Na minha opinião, esse incêndio é estimulado por duas grandes brasas. A primeira foi a decisão impensada dos EUA nos anos 90 de expandir a Otan após (ou mesmo apesar) do colapso da União Soviética.

E a segunda brasa, muito maior, é o uso cínico por parte de Putin dessa expansão da Otan para mais perto das fronteiras russas, estimulando, assim, a união dos russos em torno dele para ocultar o grande fracasso da sua liderança. Putin falhou completamente em transformar a Rússia em um modelo econômico capaz de realmente atrair seus vizinhos em vez de afastá-los, ou de inspirar seus maiores talentos a permanecerem no país em vez de entrar na fila para obter um visto para o Ocidente.

Precisamos olhar para ambas as brasas. A maioria dos americanos prestou pouca atenção na expansão da Otan no fim dos anos 90 e início dos anos 2000, chegando a países da Europa Central e Oriental como Polônia, Hungria, República Checa, Letônia, Estônia e Lituânia, todos ex-integrantes da antiga União Soviética ou de sua esfera de influência. Não é mistério o motivo que levou tais países a desejarem uma aliança obrigando os EUA a virem em seu socorro no caso de um ataque por parte da Rússia, sucessora da União Soviética.

O mistério era por que os EUA, que durante a Guerra Fria sonharam com a possibilidade de um dia a Rússia passar por uma revolução democrática e com um líder que, dentro de suas hesitações, tentasse transformar a Rússia em uma democracia e se juntar ao Ocidente, optaram por empurrar rapidamente a Otan até as fronteiras russas quando este país enfraqueceu.

Um pequeno grupo de funcionários do governo e estudiosos da política externa, entre os quais me incluo, fez essa pergunta, mas nossa voz foi abafada.

A voz mais importante, e também a única, no alto escalão do governo Clinton que fazia essa pergunta era ninguém menos do que o secretário da Defesa, Bill Perry. Ao recordar esse momento, Perry disse em 2016 ao público de uma conferência do jornal The Guardian:

"Nos anos mais recentes, a maior parte da culpa pode ser atribuída às medidas adotadas por Putin. Mas, nos primeiros anos, devo dizer que os EUA merecem boa parte da culpa. Nossa primeira reação que deu início a esse rumo desastroso foi a expansão da Otan, incluindo países da Europa Oriental, alguns dos quais fazem fronteira com a Rússia.

"Na época, trabalhávamos em proximidade com a Rússia e eles começavam a se acostumar com a ideia de que a Otan poderia ser uma aliada, não uma inimiga ... mas ficaram muito abalados com a presença da Otan bem nas suas fronteiras, e fizeram um forte apelo para que não levássemos adiante esses planos."

Em 2 de maio de 1998, após o senado americano ratificar a expansão da Otan, telefonei para George Kennan, o arquiteto da bem-sucedida política americana de contenção da União Soviética. Ingressando no Departamento de Estado em 1926 e servindo como Embaixador dos EUA em Moscou em 1952, Kennan era claramente o maior especialista americano em questões russas. Mesmo aos 94 anos, ele revelou uma mente ainda aguçada quando perguntei sua opinião a respeito da expansão da Otan.

Vou compartilhar a resposta de Kennan: "Acredito que seja o início de uma nova guerra fria. Acho que os russos vão, gradualmente, reagir de maneira bastante adversa, o que será refletido nas políticas deles. Me parece um erro trágico. Não havia nenhuma razão para isso. Ninguém está ameaçando ninguém.

Tal expansão faria os pais fundadores dos EUA revirarem nas suas tumbas".

"Assinamos um acordo para proteger uma série de países, mesmo sem ter os recursos ou a intenção de fazê-lo com um mínimo de seriedade. (A expansão da Otan) foi simplesmente uma decisão leviana de um Senado sem nenhum interesse real nas questões internacionais. Fiquei particularmente incomodado com as referências à Rússia como se se tratasse de um país louco para atacar a Europa Ocidental."

Diferenças. "Será que as pessoas não entendem? Na Guerra Fria, nossas diferenças eram com o regime comunista soviético. E agora estamos virando as costas justamente para o povo que realizou a maior revolução pacífica da história para derrubar esse regime soviético. E a democracia russa é, no mínimo, tão avançada quanto a desses países que acabamos de prometer que defenderemos da Rússia. É claro que a Rússia vai reagir mal, e então (os responsáveis pela expansão da Otan) dirão que eles sempre alertaram para essa personalidade russa, mas isso é simplesmente um erro."

Foi exatamente isso que ocorreu. A situação é complicada, mas o que quero dizer é: essa guerra é de Putin. Ele é um líder ruim para a Rússia e seus vizinhos. Mas os EUA e a Otan não são espectadores inocentes nesta evolução. /Tradução de Augusto Calil