O Globo, n. 31475, 10/10/2019. Opinião, p. 02

Censura de governo Bolsonaro afronta a Carta



A censura foi formalmente extinta ainda na ditadura militar, no seu final. Mas como é espessa a cultura autoritária no país, restam traços fortes do costume do controle da expressão e da criação artísticas na sociedade.

Esta experiência já foi vivida na gestão Lula, quando se projetou uma agência (Ancinav) cuja finalidade era supervisionar o conteúdo da produção audiovisual. Outro movimento na mesma direção ocorreu por meio de um “Conselho” que fiscalizaria os jornalistas. A justa reação no Congresso e na sociedade levou Lula a engavetar os projetos.

Agora, o mesmo autoritarismo ressurge com Jair Bolsonaro, político de extrema direita, do polo ideológico oposto ao do PT, mas com o objetivo comum de censurar.

Da mesma forma, procura-se embalar a censura com argumentos enviesados. Se com o PT a intenção era “democratizar” a produção artística e os meios de comunicação, dando-se voz às “minorias”, agora justifica-se a arbitrariedade pela “defesa dos valores cristãos” e “da família”. Quando, na verdade, trata-se de impor um pensamento único. O mesmo tem ocorrido em outros países.

O desapreço de Bolsonaro e de seu grupo pela liberdade de expressão é conhecido pelas agressões cotidianas a veículos da imprensa profissional, atacados inclusive com o uso de instrumentos de Estado.

Nas últimas semanas, atos de censura têm se espalhado na área artística, muito dependente de financiamentos de instituições estatais, empresas públicas entre elas. O governo Bolsonaro tem podido ir além das palavras e ordenar o boicote financeiro a projetos que supostamente não se enquadrem no objetivo da “defesa da fé cristã” e “da família”.

Mesmo no exterior, o governo age para atingir artistas de que não gosta por motivos ideológicos. Aconteceu no cancelamento, em um festival de cinema em Montevidéu, da exibição do filme “Chico: artista brasileiro”, de Miguel Faria Jr., por pressão da embaixada brasileira.

Organismos importantes no fomento à produção artística como Funarte, Ancine e empresas públicas, apoiadoras vitais de projetos no cinema, na música, no teatro têm, por exemplo, suspendido editais. A finalidade é inviabilizar obras que tratem de assuntos malvistos no Planalto, como a temática LGBT.

Mas o dinheiro público não é de Bolsonaro, e o Estado precisa considerar a diversidade do país, amparando os produtores de arte sem avaliações ideológicas. Se não, o governo está se apropriando de recursos da sociedade para impor um projeto político e ideológico específico. O Supremo tem sido firme na defesa das liberdades constitucionais.