O Globo, n. 31475, 10/10/2019. País, p. 04

Com um pé fora

Naira Trindade
Natália Portinari
Paulo Cappelli


Depois de expor sua irritação com o PSL na última terça-feira, o presidente Jair Bolsonaro admitiu ontem a deputados que está decidido a deixar o partido. A batida de martelo, porém, depende de uma garantia jurídica de que os parlamentares dispostos a acompanhá-lo não perderão seus mandatos. Bolsonaro quer ainda que a Justiça congele os recursos partidários do PSL.

Esse é mais um capítulo de uma queda de braço entre Bolsonaro e o presidente do partido, o deputado Luciano Bivar (PE). Insatisfeito por não ter o controle da sigla, Bolsonaro vem pressionando pela saída de Bivar nos últimos meses. Primeiro, tentou forçar uma mudança na cúpula da legenda nos bastidores. Depois, se queixou publicamente do pernambucano. Segundo aliados do presidente, sua intenção era forçar Bivar a abandonar o partido. Uma eventual permanência na sigla, não totalmente descartada, dependeria de um novo comando.

Sem solução e à espera de um plano B que agrade a ele e aos deputados que o apoiam, Bolsonaro decidiu ontem amenizar o discurso para o público externo. Em rápida entrevista, ele disse que “por enquanto” está “tudo bem” em sua relação com o PSL. Bolsonaro afirmou que não há crise com a legenda, mas, ao mesmo tempo, disse que “o pessoal quer um partido diferente”, sem deixar claro a quem estava se referindo.

—Por enquanto, tudo bem — disse Bolsonaro. — Não tem crise. Briga de marido e mulher, de vez em quando acontece. Tudo bem.

Em seu gabinete, em reunião com 15 deputados do PSL, no entanto, o tom foi outro. Também participaram os dois conselheiros do presidente na área jurídica: o ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Admar Gonzaga e a advogada Karina Kufa, que teve seu contrato com o PSL rompido ontem por Bivar. Ao sair do encontro, Gonzaga foi enfático:

— A única coisa que ele tem em mente é a transparência do ambiente onde ele está convivendo. Como isso não foi permitido no ambiente em que ele se encontra, como ele tem a bandeira da nova política, da transparência com dinheiro público, ele não está confortável no ambiente onde se encontra. Ele e vários parlamentares.

Para fora, o discurso para justificar a indefinição sobre a desfiliação mesmo depois das críticas é o do receio com a “velha política”.

— A preocupação do presidente e da bancada é sair do partido e deixá-lo com um fundo monumental para ser usado na velha política, sendo que foram eleitos por um movimento nosso — disse o deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança (PSL-SP).

Na prática, há uma preocupação com os recursos do partido e com o mandato dos deputados. Aos aliados, Bolsonaro disse acreditar que o TSE possa “congelar” as verbas do fundo partidário do PSL, sob o argumento de que eles foram conquistados com votos dele e de deputados que estão dispostos a deixar a legenda.

Na esteira da eleição de Bolsonaro, o partido obteve 11,6 milhões de votos, um crescimento que engordou o cofre do PSL de R$ 6,2 milhões, recebidos de fundo partidário em 2018, para R$ 103 milhões em 2019, segundo o TSE.

Para Bolsonaro, Bivar tem de ser impedido de movimentar os R$ 8 milhões mensais que o partido recebe para manutenção da legenda.

Ontem, ao blog de Andreia Sadi, no G1, Bivar rebateu a declaração de Bolsonaro a um apoiador, na última terça-feira, para que esquecesse o PSL. Bolsonaro acrescentou que Bivar está “queimado”.

— A fala dele foi terminal, ele já está afastado. Não disse para esquecer o partido? Está esquecido —disse Bivar.

Fidelidade partidária

Presente na reunião com Bolsonaro ontem, o deputado Bibo Nunes (PSL-RS) afirmou que a saída da legenda está definida, mas que o grupo dos descontentes estuda, junto ao presidente, uma medida jurídica para dar segurança aos deputados sobre o mandato. Bolsonaro espera o resultado de uma consulta que o partido Podemos deve encaminhar ao TSE para saber se, quando uma sigla incorpora outra, deputados podem migrar para a nova legenda sem serem considerados infiéis.

Uma resolução de 2007 do TSE permitia a entrada imediata de políticos com mandato em partidos recém-criados ou fundidos, mas uma lei de 2015 estabeleceu novos critérios e passou a vedar essa prática. Um processo movido pela Rede, que pede a revisão da lei, está em análise no Supremo Tribunal Federal (STF). Então procuradora-geral da República, Rachel Dodge, se manifestou, em abril de 2018, a favor da Rede no processo, mas o plenário da Corte ainda não julgou o mérito da questão.

Se essa tese passar, seria uma alternativa para Bolsonaro. A aposta principal seria na fusão do Patriota com outro partido também de menor expressão. O senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) têm conversado com dirigentes de outros partidos e avaliam que a fusão é a solução mais rápida, uma vez que dispensa o recolhimento de assinaturas.

Outra alternativa seria a criação de uma nova janela partidária — brecha seis meses antes das eleições para deputados mudarem de partido sem serem punidos. Isso porque o próximo intervalo, seis meses antes das eleições de 2022, é considerado distante por parlamentares que querem mudar de legenda. A ideia, porém, encontra resistência no Congresso, que teria de aprovar a medida. (Colaboraram Daniel Gullino e Gustavo Maia)

O labirinto para a troca de partido

1 Quem poderia seguir Bolsonaro em uma eventual saída do PSL?

A legislação atual permite mudança de partido sem perda de mandato em apenas três casos: mudança significativa no programa da sigla, grave discriminação política e pessoal, ou encaixe na janela partidária — um período de 30 dias no início de todo ano eleitoral. O Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já manifestou que essas condições se aplicam apenas em cargos proporcionais — ou seja, deputados e vereadores. Prefeitos, governadores, senadores e o próprio presidente da República podem mudar de partido a qualquer momento sem perder o mandato.

2 Quais argumentos podem ser usados pelos deputados?

Parlamentares podem argumentar ao TSE que sofreram discriminação e perseguição caso comprovem constrangimento ou tratamento agressivo pela direção partidária. O advogado eleitoral José Rollemberg Leite Neto lembra que a tese permitiu a migração do ex-deputado Geraldo Resende do PPS para o PMDB, em 2007, sem haver perda de mandato. Já o ex-ministro do TSE Admar Gonzaga, que tem atuado como conselheiro de Bolsonaro, alega que a falta de transparência no uso de recursos partidários pode representar um conflito que balizaria a desfiliação.

3 Bolsonaro pode levar nomes do PSL para um novo partido?

Não. O TSE permitia, em uma resolução de 2007, a migração de deputados para partidos recém-criados, em um prazo de 30 dias a partir do registro da nova legenda. No entanto, a minirreforma eleitoral de 2015 anulou essa possibilidade. Outro ponto que foi excluído da lei em vigor é a desfiliação sem perda de mandato em caso de fusão ou incorporação do partido por outra legenda. Agora, os parlamentares precisam provar que uma eventual fusão descaracterizou o programa do seu partido. Esse caso, porém, só se aplicaria na hipótese de o PSL se fundir a outro partido, o que não é estudado.

4 Com quem ficariam os recursos do fundo partidário e eleitoral?

Pela legislação eleitoral, o PSL manteria toda a sua verba do fundo partidário e do fundo eleitoral. Os deputados que abandonam o partido não podem levar uma fatia dos recursos para a nova legenda. O rateio do fundo partidário é decidido majoritariamente pela proporção de votos obtidos para a Câmara.

Já o fundo eleitoral segue, além desse critério, o número de deputados e senadores eleitos por cada legenda. Eventuais mudanças no tamanho das bancadas do PSL na Câmara e no Senado não modificam o tamanho da verba que cabe ao partido.

5 Que medidas poderiam facilitar a migração de partido?

Parlamentares do PSL estudam a criação de uma nova janela partidária para permitir a mudança de sigla ainda em 2019. A medida enfrenta resistência no Congresso, que precisaria aprová-la. Já uma ação protocolada pela Rede Sustentabilidade no Supremo Tribunal Federal (STF), em 2015, pede a derrubada do trecho da lei eleitoral que vetou a chance de migração em caso de criação de um novo partido. Em 2018, a então procuradora-geral da República, Raquel Dodge, se manifestou a favor da Rede. Caso o STF acate os argumentos, voltaria a valer a regra anterior, que permitia esta prática.