O Globo, n. 31540, 14/12/2019. Economia, p. 26

Com acordo entre EUA e China, soja brasileira pode perder espaço

Eliane Oliveira
Gabriel Martins
David Fickling


O acerto inicial entre Estados Unidos e China, que poderá encerrar a disputa comercial entre as maiores potências econômicas do mundo, preocupa governo e exportadores brasileiros. O Brasil praticamente tomou o espaço dos EUA no mercado chinês de soja. E ampliou suas exportações de carne para a China, com reflexo também de um surto de peste suína africana no país, o que acabou provocando uma alta de preços no mercado brasileiro.

O acordo negociado ontem comos EUA prevê que a China aumente suas compras de produtos agrícolas americanos. Serão US$ 16 bilhões por ano até 2022, podendo chegara até US$ 50 bilhões por ano, segundo o presidente americano Donald Trump. — Brasil e EUA são os maiores exportadores de soja do mundo. E, agora, é como se o Trump estivesse criando uma reserva de mercado coma China — avalia José Augusto de Castro, presidente da Associação do Comércio Exterior do Brasil (AEB). Welber Barral, ex-secretário de Comércio Exterior e sócio da consultoria Barral M Jorge, diz que o Brasil poderá exportar soja para os outros mercados. O impacto maior será no preço, que deve cair. Mas ele não vê efeitos para as exportações de carne brasileiras para a China, já que a demanda no país está muito alta.

Taxação sobre aço

Segundo o secretário substituto de Comércio e Relações Internacionais do Ministério da Agricultura, Flavio Bettarello, a saída será diversificar a pauta exportadora para a China e buscar mercados na Ásia, na África, na América do Sul e na própria União Europeia (UE).

Em meados do ano, os europeus assinaram acordo delivre comércio como Brasil que deverá ser ratificado pelo Legislativo de cada paí sem 2020.

— Sabemos que um dia esse acordo será firmado. Os exportadores brasileiros se aproveitaram do momento, mas não podemos deixar que essa oportunidade acabes e transformando em dependência.

De janeiro a novembro deste ano, o Brasil exportou US$ 57,6 bilhões para a China, 28% amais do queno mesmo período de 2018. A soja representou 34%.

O Brasil também foi prejudicado pela guerra comercial. No ano passado, outros países, além da China, tiveram exportações de aço e alumínio sobretaxadas em, respectivamente, 25% e 10%. Para fugir da tarifa, indústrias brasileiras, argentinas e sul-coreanas firmaram acordo de restrição de exportações para os EUA.

Há duas semanas, Trump ameaçou numa rede social sobretaxar o Brasil e a Argentina, no que foi visto por especialistas como um recado para agradar os produtores agrícolas americanos insatisfeitos com o espaço cada vez maior conquistado por soja e carne brasileira no mercado chinês.

Nada saiu de oficial. Na última terça-feira, o principal conselheiro econômico de Trump, Larry Kudlow, disse que não havia decisão ainda sobre sobretaxar o aço.

Dividendos políticos e pouco efeito econômico

Depois de quase dois anos de sobretaxas, retaliações, reuniões bilaterais, tuítes raivosos e manobras nos bastidores, Estados Unidos e China finalmente concluíram a primeira fase de um acordo comercial. Mas, até onde se pode ver, não há nada nesta fase inicial do acordo comercial que já não existisse antes dos últimos dois anos de pugilismo.

A reforma das leis de propriedade intelectual é um projeto antigo do presidente chinês Xi Jinping. As primeiras cortes judiciais para casos de pirataria e desrespeito a direitos de foram estabelecidos na China em 2014 e, desde então, as decisões têm sido, em geral, justas com os estrangeiros e as punições, cada vez mais rigorosas.

O compromisso em ampliar as compras de produtos agrícolas americanos também era previsível. Este era o principal tópico da tentativa de acordo que não foi adiante em maio. E, desde então, a devastação do rebanho suíno da China, devido ao surto de febre suína africana no país, aumentou ainda mais a necessidade do país de importar proteínas como carne e soja. Washington iniciou esta guerra comercial sem ter clareza sobre seus objetivos, ou sobre como iria atingi-los ou ainda sobre que sacrifícios estava disposto a aceitar. Agora, obteve um cessar fogo que lhe permite ao menos sair do campo de batalha com fragmentos intactos de sua dignidade. Mas seria muito melhor que a batalha nem tivesse começado.

Roberto Dumas, professor de Economia Internacional e chinesa do Insper, destaca que, ao divulgar com entusiasmo o resultado das negociações com os chineses, o presidente americano Trump falava para uma plateia interna. Nas redes sociais, Trump classificou a medida como um "acordo incrível".

— O acordo diminui algumas tensões no cenário global, e isso é importante — diz o professor. — Mais uma vez, o presidente americano foi às redes sociais para comemorar uma conquista do seu governo. Porém, analisando o que realmente foi acordado, podemos concluir que é muita comemoração para pouco efeito. Trump está tentando transformar esse acordo na melhor negociação já feita na História, de olho na eleição de 2020.

E, dentro do público doméstico, uma fatia do eleitorado ganha destaque especial: os produtores agrícolas. É para eles que, segundo especialistas, Trump quer mandar o recado de que a China comprará mais dos Estados Unidos. Com poucos efeitos práticos na economia, a trégua na guerra comercial poderá ter assim, para Trump, importantes dividendos políticos.