O Globo, n. 31510, 14/11/2019. Sociedade, p. 28

Pela primeira vez, negros são maioria nas universidades públicas do país
Bruno Alfano
Constança Tatsch
Pedro Capetti



O número de estudantes negros nas universidades públicas passou, pela primeira vez, o de brancos. O dado, divulgado ontem, é da pesquisa “Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil”, feita pelo IBGE com base nas informações da Pnad Contínua.

Em 2018, o Brasil tinha mais de 1,14 milhão de estudantes autodeclarados pretos e pardos, enquanto os brancos ocupavam 1,05 milhão de vagas em instituições de ensino superior federais, estaduais e/ou municipais. Isso equivale, respectivamente, a 50,3% e 48,2% dos mais de 2,19 milhões de brasileiros matriculados na rede pública.

Segundo o IBGE, o avanço dessa parcela da população é resultado, parcialmente, do sistema de cotas, que desde 2012 reserva vagas a candidatos de determinados grupos populacionais.

Em 2016, foi consolidada a Lei Federal de Cotas, que reservou ao menos 50% das vagas no Sistema de Seleção Unificada (Sisu) para atender a critérios de renda ou raça. Analisados em conjunto com os resultados do antigo questionário da Pnad, os dados mostram uma tendência crescente de ocupação de vagas por essa parcela da população.

—Temos uma trajetória de melhora. É resultado de um processo, da universalização do ensino fundamental, correção do fluxo escolar, adequação na série correta, redução do atraso e redução do abandono, somando com as políticas de acesso ao ensino superior — afirma Luanda Botelho, analista do IBGE.

Diretor da ONG Educafro, Frei David também credita a conquista a fatores como organização de cursos de pré-vestibular comunitários e a isenção da taxa de inscrição para estudantes pobres.

— Cada negro que colocamos na universidade é menos uma vítima do extermínio policial. Menos um homem pobre a perambular em busca de alimento — defendeu Frei David.

Ivan Cláudio Pereira Siqueira, presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CNE), projeta que a maior entrada de negros na universidade tenha impacto positivo para as próximas gerações.

— Ter mais negros e negras com curso superior, num país como o nosso, tem impacto do ponto de vista financeiro e simbólico. Mais garotos na favela vão poder passar a acreditar que eles também conseguem. Sem contar que, quando chegam na universidade, negros podem estudar como melhorar a situação de onde eles partiram. A próxima geração vai ter uma melhor condição de saúde mental por poder compreender mais facilmente a si próprio — avalia Siqueira.

Diferença de renda

Embora o estudo comprove que, quanto maior o nível de instrução, maior a renda, ele mostra também que, mesmo quando a população negra conclui o ensino superior, ela ainda ganha 45% menos do que a população branca.

A pedagoga Iêda Leal, coordenadora do Movimento Negro Unificado, diz que o país está no caminho correto, mas que ainda é preciso se preocupar com a permanência desses alunos na universidade.

— Precisávamos estar nesse espaço para a oxigenação das mentes na academia e para que o negro seja tratado como merece. Mas ainda temos problemas na permanência.

Além disso, embora haja progresso, negros são sub-representados na universidade, segundo o IBGE, já que a população brasileira é formada por 55,8% de pretos e pardos.

Mercado desigual

Outro aspecto ainda desigual é a ocupação de cargos gerenciais no mercado de trabalho. Segundo o IBGE, brancos ocuparam 68,6% desses postos em 2018, contra 29,9% dos negros.

Estudante de psicologia na Uerj, Renato Gama, 32, sabe que o mercado que o espera será desigual.

— O fato de ter mais estudantes negros na universidade é uma melhora, mas a qualidade da formação e como se dá a passagem e permanência desse estudante na universidade me impedem de usar a palavra avanço — avalia.

Gama também se preocupa com as fraudes nas cotas. Universidades como Unicamp, UFRJ e UFRGS já tiveram denúncias de grupos de alunos apontados como brancos ocupando vagas de negros e pardos.

Estudante de Letras na Universidade Federal Fluminense (UFF), Larissa Maciel, 26, negra, foi a primeira da família a entrar na universidade.

— Nunca tive aulas com professores negros e sou uma das poucas negras na minha turma — afirma.

O estudo ainda revela que o analfabetismo entre a população negra com mais de 15 anos caiu de 9,8%,em 2016, para 9,1%, em 2018, mas ainda é mais do que o dobro em comparação com os brancos, cuja taxa variou de 4,1% para 3,9%, no mesmo período.

Em números gerais, a quantidade de pretos e pardos analfabetos caiu de 8,62 milhões para 8,37 milhões — uma diferença de 250 mil pessoas.

O pior cenário de analfabetismo acontece no campo . No ambiente rural, 20,7% dos negros com mais de 15 anos são analfabetos . Entre os brancos, são 11%. Nas cidades, a proporção é de 6,8% contra 3,1%.

— A criança tem que ter contato com a cultura, com livros. Isso que os filhos da classe média têm e, por isso, chegam alfabetizados na pré-escola — afirmou o conselheiro do CNE, Ivan Cláudio Pereira Siqueira. —Se você nasce numa família em que ninguém lê, tem que adquirir isso na escola. Mas nem todas oferecem, e muitas cidades não têm uma biblioteca próxima. Então, como apessoa vai ter contato com livros? É muito difícil!

Opinião do Globo

Injustiça

Parte do arcabouço jurídico, nem por isso as cotas raciais aplicadas na seleção de candidatos à universidade deixam de criar polêmicas. Como a que envolve a avaliação de fenótipos de vestibulandos feita por comissões que se assemelham a “tribunais raciais”.

A justiça tem acolhido reclamações de reprovados nessas aferições visuais e incômodas, e isso reforça a certeza dos riscos de toda ordem existentes em um sistema de escolha baseado em algo que cientificamente não existe: raça.

A margem para injustiças é enorme.