O Estado de S. Paulo, n. 46884, 27/02/2022. Notas & Informações, p. A3

MP é autônomo, não inimputável



Em decisão liminar, o ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), determinou que o crime de prevaricação não se aplica aos membros do Ministério Público (MP) e do Poder Judiciário no exercício de suas atividades funcionais e com amparo na interpretação da lei e do Direito. A decisão veio preservar a liberdade de convencimento desses funcionários públicos, evitando a ocorrência do crime de hermenêutica. Não deve um juiz ou promotor sofrer punição criminal por aplicar, no exercício de suas funções, uma “orientação minoritária, em discordância com outros membros ou atores sociais e políticos”, disse Toffoli.

A rigor, a decisão não tem nenhuma novidade. O crime de prevaricação – “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal” – já não era aplicável a juiz ou procurador que exerce sua liberdade de convencimento no cumprimento de suas atribuições funcionais. A autonomia funcional não é mera ficção. Tem efeitos concretos.

No entanto, como lembrou Toffoli na decisão, “isso não quer dizer que não poderá haver responsabilização penal de magistrados e de membros do Ministério Público em face de sua atuação ao agir com dolo ou fraude sobre os limites éticos e jurídicos de suas funções, ocasionando injustos gravames a terceiros e obtendo vantagem indevida para si ou para outrem”. A autonomia funcional de juízes e promotores não é uma espécie de imunidade irrestrita, como se cada um pudesse agir como bem entendesse. A lei continua valendo igualmente para todos. A decisão liminar apenas ratificou que o crime de prevaricação não incide sobre o exercício, dentro da lei, das atribuições funcionais da magistratura e do Ministério Público.

O caso não envolveu, portanto, nenhuma interpretação criativa da lei. Apenas se aplicou um dos princípios fundamentais do Direito, que assegura coerência ao sistema jurídico: o que está expressamente permitido não está proibido. Se o juiz pode interpretar a lei de acordo com seu íntimo convencimento, não cabe persegui-lo criminalmente em razão deste exercício de suas funções.

Vale lembrar que, ao longo dos anos, juízes têm recebido sanções administrativas dos respectivos tribunais em razão de aplicações dissonantes da lei. Ainda que não seja uma punição penal, trata-se de evidente tentativa de restringir a liberdade de magistrados, em forçada e atípica homogeneização das decisões judiciais. Para piorar, não raro, tribunais que aplicam sanções administrativas a juízes e desembargadores por discordância hermenêutica são contumazes descumpridores da jurisprudência das Cortes superiores.

Em relação ao Ministério Público, a situação é distinta. Em primeiro lugar, vigora na instituição uma compreensão especialmente ampla do que seria, na prática, sua autonomia funcional. São raríssimos os casos de sanção administrativa por causa da atuação profissional de procuradores. Além disso, as decisões judiciais são sempre fundamentadas e estão sujeitas ao duplo grau de jurisdição. Eis a notável diferença com o Ministério Público: o que cada juiz faz está sempre submetido a um controle posterior. Por exemplo, a liminar de Toffoli sobre o crime de prevaricação será apreciada pelo plenário do STF. No Ministério Público, a dinâmica é distinta. Em muitas situações, o procurador tem a prerrogativa de dizer a primeira e a última palavra, o que contraria o princípio republicano de que não pode haver atuação do poder público sem o respectivo controle.

De forma similar ao que ocorre com a magistratura, a autonomia funcional do Ministério Público tem de estar sujeita a controle. Não é mordaça, tampouco coação. É decorrência da República, em que todos estão sujeitos à lei, também os agentes públicos. Seria grave equívoco, portanto, achar que a decisão de Toffoli impede que procuradores respondam por seus atos no exercício de suas funções. Omissão continua sendo omissão. Abuso continua sendo abuso. Lei continua sendo lei.