O Globo, n. 31539, 13/12/2019. País, p. 4

Para evitar derrota: prioridade presidencial

Gustavo Maia
Flávio Tabak


Na tentativa de evitar uma derrota no Congresso, o presidente Jair Bolsonaro começou a atuar pessoalmente para minimizar alterações pretendidas por parlamentares nos principais pontos do projeto que flexibiliza regras do Código de Trânsito Brasileiro. Ao GLOBO, o presidente disse que pediu ao relator da proposta, deputado Juscelino Filho (DEM-MA), que preserve a “alma do projeto”. O texto apresentado por Bolsonaro, com polêmicas como o aumento de 20 para 40 pontos do limite para suspender a habilitação, recebeu 101 emendas de deputados interessados em barrar ideias do presidente.

— Falei rapidamente com o relator, se fosse possível, para ele voltar à proposta original. Não sei qual vai ser a proposta dele — afirmou Bolsonaro ao GLOBO.

Juscelino Filho confirmou a conversa com o presidente. Ele já havia apresentado um parecer, com uma série de mudanças no texto original, mas disse estar finalizando nova versão do parecer. Segundo o deputado, Bolsonaro expôs “o que era prioritário para ele”:

— A gente está vendo o que é possível construir.

No primeiro relatório, o aumento de 20 para 40 no limite de pontos para a suspensão do direito de dirigir foi substituído por uma escala com três limites de pontuação: com 20 pontos, se houver duas ou mais infrações gravíssimas; 30, com apenas uma infração gravíssima; ou 40, sem nenhuma infração gravíssima. A justificativa foi manter o objetivo de Bolsonaro de tornar o sistema mais operacional, mas sem descuidar da segurança.

A proposta de ampliação de cinco para dez anos no prazo para renovação da Carteira Nacional de Habilitação para condutores com até 65 anos, e de três para seis anos para quem estiver acima dessa idade, também foi modificada. O primeiro parecer estabelece um escalonamento, iniciado com dez anos para renovação de quem tiver até 40 anos de idade, com exceção dos motoristas profissionais das categorias C, D e E. Para estes, o prazo será de cinco anos, assim como os condutores de 40 a 70 anos. A partir dessa marca, a validade será de três anos.

— Isso aí não atende. Primeira coisa: um cara com 46 anos de idade está velho, pode ter problemas graves de saúde? Não justifica — comentou o presidente.

O presidente reclamou ainda da proposta do número de pontos necessários para a suspensão da CNH.

— Olha, você já deve ser motorista e deve ter sido multado grave ou gravíssimo e sabe que não houve uma má-fé da tua vontade, avançar o sinal. Muitas vezes está desregulado ali, lógico, maldosamente, o pardal e multa você — afirmou Bolsonaro.

Para ele, “quem vive no volante”, como motoristas de táxi, Uber, caminhão, ônibus ou van, sabe que corre o risco seríssimo de completar o ano com mais de 20 pontos na carteira. Bolsonaro disse ter pedido ao ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Jorge Oliveira, que analisasse o relatório:

— 101 emendas! Fizeram um novo Código de Trânsito.

Ainda de acordo com Bolsonaro, havia um acerto com presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para votar o projeto nesta semana ou na próxima, mas, diante do parecer, sinalizou que pode haver atraso:

— Agora como está o projeto, sem conversar para enxugar, fica difícil a gente dar essa boa notícia à população dos dez anos na carteira e dos 40 pontos.

AGU vai recorrer

Procurado pelo GLOBO, Maia disse não acreditar em acordo para votar o projeto na semana que vem. Já o presidente da comissão especial que analisa o projeto, Luiz Carlos Motta (PL-SP), está mais otimista, afirma que há clima para votação e que pretende convocá-la para a próxima semana.

O colegiado analisa a proposta de forma conclusiva. Se o projeto for aprovado, portanto, poderá seguirá diretamente para o Senado, a não ser que haja recurso para votação no plenário da Câmara.

Bolsonaro também agiu ontem para tentar levantar outra bandeira de campanha na área. Ele determinou que a Advocacia-Geral da União (AGU) recorra da decisão do juiz federal Marcelo Monteiro, de Brasília, que derrubou anteontem a medida do Executivo, de agosto, que suspendeu o uso de radares estáticos, móveis e portáteis nas rodovias federais do país.

O magistrado deu 72 horas para a Polícia Rodoviária Federal (PRF) restabelecer o funcionamento dos equipamentos de fiscalização. Caso a decisão não seja cumprida, a União deverá pagar multa de R$ 50 mil por dia de atraso.

Bolsonaro foi às redes sociais questionar aos seus seguidores se são favoráveis à volta da fiscalização. “Você é a favor da volta dos radares móveis nas rodovias federais?”, escreveu. Em seguida complementou: “Determinei à AGU recorrer da decisão judicial de 1a. instância.”

Fixação pela agenda de trânsito tenta construir base social

O ex-presidente Lula construiu sua base social a partir do sindicalismo. “O PT nasce da decisão dos explorados de lutar contra um sistema econômico e político que não pode resolver os seus problemas, pois só existe para beneficiar uma minoria de privilegiados”, diz o manifesto de fundação da sigla, de 1980. Quase quatro décadas depois, Lula saiu da prisão e voltou a fazer acenos aos trabalhadores, discurso que nunca deixou adormecido mesmo após os escândalos revelados na Operação Lava-Jato: “O Brasil piorou, o povo está desempregado, o povo está trabalhando de Uber, de bicicleta para entregar comida”, disse em Curitiba, ao sair da cadeia.

De uma piada ao “tá ok?”, o presidente Jair Bolsonaro, assim como Lula, tem os cacoetes da informalidade e espontaneidade necessários para estabelecer uma conexão direta de comunicação com a massa. Curiosamente, é o ponto de contato dos extremos políticos do Brasil de 2019.

Com dificuldade para fazer anúncios positivos em um ano de recuperação lenta da economia, Bolsonaro lança mão de sua pauta preferida de “bondades”: a agenda de trânsito. O presidente reclamou ontem que “fica difícil a gente dar boa notícia” porque foram feitas 101 emendas ao projeto do governo.

O texto original afrouxou regras estabelecendo, por exemplo, o dobro de pontos para ter a carteira de motorista suspensa ou a advertência por escrito para quem transportar crianças de forma irregular no lugar da infração gravíssima. Para o presidente não há riscos, uma vez que os brasileiros sabem o que é certo ou errado no trânsito e há punições demais no país onde 35 mil pessoas morreram em acidentes em 2017, segundo os últimos dados do Datasus.

Ao defender seu mais novo projeto desidratado, após as profundas alterações no pacote anticrime, Bolsonaro insiste na sua agenda própria com o povo, mais especificamente com caminhoneiros e motoristas profissionais — segundo o Datafolha, 67% dos brasileiros rejeitam o fim dos equipamentos de fiscalização das estradas.

Após a Justiça decidir pela volta dos radares móveis, o presidente abriu enquete nas redes: “Você é a favor dos radares?”. Tenta estabelecer sua base ou “lutar contra um sistema econômico e político que não pode resolver os seus problemas”, como diz o manifesto petista. Há um quê de rebeldia, transgressão e libertação que atraem estratos sociais.

Diz proteger “quem vive no volante” porque os motoristas da Rio-Santos, rodovia que costumava frequentar para chegar à sua casa de Angra, vivem o risco seríssimo de completar o ano com mais de 20 pontos na carteira. Em tese, uma agenda libertária, capaz de retirar o Estado do “cangote” dos cidadãos, facilitando o dia a dia dos trabalhadores. “Não tem local de risco. Ninguém é otário de ter uma curva na frente, uma ribanceira, o cara entrar a 80, 90, a 100 por hora. Não é otário, não faz isso aí. Não precisa ter um pardal para multar o cara lá”, disse o presidente em maio, ao defender sua tese.

Na semana passada, no entanto, reportagem do GLOBO revelou que, após seis anos de quedas consecutivas, as estradas brasileiras voltaram a registrar alta de acidentes graves, com mortos ou feridos.

Os próximos anos de mandato dirão se Bolsonaro conseguirá convencer a maioria de que é mais seguro dirigir sem fiscalização de radares fixos e móveis ou se as mortes no trânsito vão falar mais alto.