O Globo, n. 31538, 12/12/2019. Segundo caderno, p. 1, 3

Entrevista: Luiz Carlos Barreto, produtor

Entrevista: Luiz Carlos Barreto


Luiz Carlos Barreto produzia o filme “Joanna Francesa” (1973), de Cacá Diegues, quando o então senador Arnon de Mello, que ele conhecia desde seus tempos de repórter, pediu um estágio para o filho. Sem experiência com cinema, Fernando Collor de Mel lo ficou responsável por ciceroneara atrizf rances aJeanne Moreau, estrelado longa. Até que, numa festado elenco, ela se irritou com o garoto e emparedou Cacá: “Ou eleou eu ”. Foi a deixa para a demissão do futuro presidente do Brasil, que seria o responsável pela extinção da Embrafilme, em 1990.

— Quando soube, liguei para o Cacá e disse: “A culpa é sua! Quem mandou demitir o menino?” — ri o produtor.

Histórias como essa estão em “Barretão”, documentário de Marcelo Santiago, que será exibido hoje, no Festival do Rio. Com roteiro de Geneton Moraes Neto (1956-2016), em parceria com o diretor, e produção de André Saddy, o filme narra a trajetória do repórterque largou acarrei raparas e tornar o maior produtor de cinema do Brasil.

Em quase seis décadas de audiovisual, há tramas de todo o tipo. Algumas tragicômicas. Quando “Terra em transe” (1967), de Glauber Rocha, foi censurado, Barretão, que assina a fotografia eaproduçã odo filme,j untou-se ao diretor e foi apelara um coronel. Ouviu, sem rodeios :“Estou processando você, Glauce Rocha, quem e chamou de nazista ”. O censor confundia o diretor coma atriz.

Mais de 50 anos depois, Barretão se vê novamente falando em censura. E continua um articulador. No dia desta entrevista, em sua casa, em Laranjeiras, vinha de um encontro com o governador do Rio, Wilson Witzel. Sobre os recentes ataques do governo federal ao cinema, aliás, o cearense de Sobral, que em vez de dois beijinhos cumprimenta com dois “xêros”,res ponde coma experiência de seus 91 anos.

— Não adianta. Ninguém liquida o cinema brasileiro— diz o produtor de filmes como “Vidas secas” (1963), “Dona Flore seus dois maridos” (1976) e “O que é isso, companheiro?” (1997).

No filme, você fala de seus sonhos com o Glauber...

Eu sonhava muito com ele. Sobre tudo. Uma vez, quando o Sarney era presidente (de 1985 a 1990), Glauber me disse num sonho: “Barreto, tem que fazer uma reunião com a turma, porque vão derrubar o Sarney”. Acordei ainda com a sensação da mão dele na minha perna...

“Meu médico disse que vou viver até 110 anos. Respondi: ‘Só? Quero ir até 150!’ Já cruzei com a morte várias vezes. Como disse um cearense de 105 anos quando lhe perguntaram a receita: ‘É só não morrer’. Não tem segredo. Você vai vivendo .... ”

Ficou rico com cinema?

(Balança a cabeça negativamente.) O que ganhei em cinema botei em cinema. Ganhei mais dinheiro como jornalista. Já vendemos apartamento e carro para fazer filme. O Cinema Novo não dava grana, era considerado de difícil assimilação.Agente o chamava de miura, como o touro bravo.

Você se define como “discípulo de Lucy Barreto”, sua sócia e mulher há 65 anos...

O Cinema Novo era esculhambado, ninguém lia roteiro, era aquela coisa de uma ideia na cabeça. E eu embarquei. Por isso, às vezes os filmes tinham certas deficiências. Mas a Lucy começou a se dedicar e a organizar tudo.

E o futebol? Você era um ótimo meio de campo...

Tenho condições de jogar, mas estou com uma doença quesódáemcraque( risos): artrose no joelho, consequência de quem bate de trivela. Fui do juvenil do Flamengo. Depois, me emprestaram para um time de Niterói. Disputei campeonato e, quando vi que não iam me pagar, eu e Sansão, juiz cearense, mijamos na vitrine de troféus do clube. Encerrei a carreira ali.

O filme lembra que você batizou a canção “Tropicália”, do Caetano. Como foi?

Eu e Glauber tínhamos a ideia de fazer uma festa no Copacabana Palace decorada com coqueiros e tal. Íamos chamar de Tropicália. Um dia, estávamos em São Paulo e fomos almoçar na casa do desenhista Aldemir Martins. Lá, encontramos o Caetano, que cantou a estrofe “Viva a banda/ Carmen Miranda da da da da”. Aí, eu falei: “olha, Glauber, já temos a trilha sonora da festa Tropicália”. O Caetano ouviu, gostou e perguntou se poderia dar o nome à música. 

O longa “Barretão” é dedicado a seu filho Fábio, que morreu em novembro. Como lida com o luto?

Marcelo (Santiago, o diretor) trabalhou com o Fábio. Quando fez o filme, ainda havia esperança de recuperação. Mas estes dez anos do coma foram uma convivência diária com uma morte anunciada. Fábio era um fenômeno de saúde. Tentamos tudo. Inclusive, o médico que cuida do (Michael) Schumacher. Ele tinha momentos de mínima consciência. Fez cirurgias, usamos um marca-passo cerebral. Teve pneumonia, infecção generalizada e superou tudo. Mas o organismo vai se desgastando. É triste, só que você pensa em tudo o que ele viveu... Fábio era uma unanimidade. Nunca vi alguém falar mal dele, mesmo quando estava doidão por aí... Ele usou muita droga. Fica um vácuo no coração, mas tem que encarar. Viveu uma vida rica, fez os filmes que quis.

Você pensa na morte?

Meu médico disse que vou viver até 110 anos. Respondi: “Só? Quero ir até 150!” Já cruzei com a morte várias vezes. Caí de avião, fiz reportagem atrás de bandido na Mangueira. Como disse um cearense de 105 anos quando lhe perguntaram a receita da longevidade: “É só não morrer”. Não tem segredo. Você vai vivendo .... 

Você viu a política influenciar a produção cinematográfica brasileira várias vezes. Como avalia o momento atual?

Já passamos por poucas e boas. A ditadura militar foi um ensinamento. O cinema soube negociar sem fazer concessão. Olha, ninguém liquida o cinema brasileiro. Mas também é perigoso ficarmos na posição de que vamos sair da nuvem negra. Não há dúvidas de que vamos, mas isso exige uma estratégia de luta. Não podemos nos comportar como grêmio estudantil, se não entramos na discussão histérica que está acontecendo. Essa grita em relação à homenagem a (Elizabeth) Bishop na Flip, por exemplo, é patrulhamento absurdo! Há uma cegueira ideológica. Como não atribuir importância à obra revolucionária dela?

Como o cinema deve agir?

Via Congresso e Supremo. Não adianta bater boca com olavistas a quem o Bolsonaro entregou a cultura. Houve a radicalização e a ascensão desse tal de (Roberto) Alvim (secretário especial da Cultura). Defendo que a Ancine (Agência Nacional do Cinema) vá para o Ministério da Economia, junto com indústria e comércio.

Sua briga é para que o cinema seja tratado como indústria...

Sim, a Ancine precisa ser tratada como indústria e ser “desideologizada”. Nosso comportamento tem que ser como o das indústrias farmacêutica, aeronáutica e do turismo, que vão para o Supremo exigir o cumprimento das leis. Nossa luta tem que ser de caráter econômico-empresarial e não ideológica. Essa coisa de brigar porque retirou cartaz da Ancine é desperdício de energia. A luta não é discutir censura, eles não vão conseguir impor nada nesse sentido. Está na Constituição.

A tentativa de corte de recursos para conteúdo LGBTQ+ não é dirigismo?

Bolsonaro diz que o governo não pode “financiar esse tipo de coisa”. Mas a questão é ainda maior. Colocaram na cabeça da população a ideia de que fazemos cinema com dinheiro público. Não usamos um tostão do orçamento, o dinheiro vem da Condecine (contribuição recolhida do setor audiovisual), uma taxa que nós mesmos pagamos.

No filme, você diz que pensam que cinema “é feito numa festa permanente, tomando umas e outras”...

Uma vez, um investidor de “O quatrilho” (filme de seu filho Fábio Barreto) pediu para assistir à filmagem. Havia uma certa expectativa de ver os artistas contando piada, bebendo champanhe. Ele ficou 12 horas no set e me disse: “Foi uma aula de engenharia de produção”. Cinema é operação militar.

Você define a Ancine como “um monstro” e diz que atender às exigências do órgão é mais difícil do que filmar. Por quê?

Quem regula e fiscaliza não pode fomentar. Quando criamos a Agência (Barretão ajudou a elaborar o projeto), no governo Fernando Henrique, em 2001, a ideia era um plano estratégico para alcançar a sustentabilidade da indústria cinematográfica. Só que a medida provisória foi deformada, sofreu 51 emendas. A lei brasileira é baseada num critério de cinema independente, com regras de mercado. Só que a Ancine nunca baixou instrução normativa para regular o mercado. Há regras engessadas para a produção, e hoje as distribuidoras é que mandam, decidindo o rumo dos filmes.