O Globo, n. 31509, 13/11/2019. Mundo, p. 25

Presidente sem votação
Janaína Figueiredo
Marina Gonçalves


Mesmo sem quórum em nenhuma das duas Casas do Congresso boliviano, com a ausência das bancadas majoritárias do Movimento ao Socialismo (MAS), partido do ex-presidente Evo Morales, a senadora opositora Jeanine Áñez, segunda vice-presidente do Senado, se declarou na noite de ontem presidente interina da Bolívia.

— Assumo de imediato a Presidência do Estado e me comprometo a tomar todas as medidas necessárias para pacificar o país —disse Áñez, que pertence ao direitista Movimento Democrata Social, ao anunciar sua posse no cargo que está vago desde domingo, após Morales renunciar sob pressão de protestos convocados pela oposição, de um motim policial e de um ultimato dos militares. — Queremos convocar eleições o mais rápido possível, com autoridades probas, de mérito, de capacidade, que sejam independentes.

A oposição a Morales tentou reunir o Congresso durante todo o dia para aceitar formalmente a carta de renúncia do ex-presidente e eleger seu sucessor de acordo com as exigências constitucionais. Na Câmara, a sessão foi adiada após duas tentativas por falta de quórum. No Senado, após mais de duas horas de espera, Áñez anunciou que estava assumindo o cargo.

Não houve nenhuma votação. A ausência dos legisladores do MAS impediu que se reunisse o quórum mínimo necessário de 19 dos 36 senadores. Os parlamentares do partido de Morales disseram que pretendiam comparecer, mas não tinham condições de segurança para se deslocar por causa dos bloqueios montados pelos opositores nas estradas, que atingem inclusive as vias que ligam o aeroporto a La Paz.

Brasil já reconheceu

Do lado de fora do Congresso, apoiadores de Morales, que chegaram a La Paz vindos em massa da cidade vizinha de El Alto, entraram em confronto com manifestantes convocados por Luis Fernando Camacho , o líder da ala mais radical da oposição, para, segundo ele, “garantir a sucessão constitucional”.

Na última semana, Camacho tomou a frente das manifestações pela renúncia de Morales, cuja reeleição em primeiro turno para um quarto mandato no pleito de 20 de outubro foi contestada pelos opositores sob alegações de fraude. Após a proclamação de Áñez, ele disse que “felicitava a senadora” e que esperava “que a paz volte”. Também afirmou desejar que a posse leve a “um processo eleitoral limpo e transparente, que traga de volta a democracia”.

Em seu comitê em Santa Cruz, houve uma explosão de euforia quando Áñez apareceu na TV. A equipe de Camacho cantou o Hino Nacional e alguns chegaram a beijar a imagem de Áñez na TV.

— Somos um pilar central deste momento que vive o país, nossa participação foi essencial — disse o vice-presidente do comitê, Rómulo Calvo, ao GLOBO.

O ex-presidente Carlos Mesa (2003-2005), que ficou em segundo na disputa presidencial, reconheceu Áñez como presidente. “Nosso país consolida, com sua posse, sua vocação democrática e a valentia de uma luta popular legítima, pacífica e heroica”, tuitou ele.

No domingo, antes de renunciar, Morales havia proposto a realização de um novo pleito, após uma auditoria negociada por seu governo com a Organização dos Estados Americanos (OEA ) concluir que ele venceu a eleição, mas que irregularidades tornavam improvável essa vitória em primeiro turno. A oferta não diminuiu a pressão por sua saída.

Exilado no México, Morales disse que a posse de Áñez conclui um golpe de Estado na Bolívia. “O golpe mais astuto e nefasto da história foi consumado. Uma senadora de direita golpista se autoproclama presidente do Senado e, logo em seguida, presidente interina da Bolívia, sem quórum legislativo, cercada por um grupo de cúmplices e apoiada pelas Forças Armadas e pela polícia”, escreveu no Twitter.

Com a renúncia de Morales e de seu vice, os seguintes na linha sucessória seriam os presidentes do Senado (Adriana Salvatierra) e da Câmara (Victor Borda), mas ambos também entregaram seus cargos, junto com seus vices. Neste caso, a Constituição obriga a convocação de eleição em até 90 dias. Na segundafeira, a senadora Áñez reivindicou a sucessão.

Ao se proclamar presidente, ela disse estar apoiada na Constituição, já que a saída de Morales e do seu vice, Alvaro García Linera, do país, configurou sua “ausência definitiva” do território nacional. O Tribunal Constitucional referendou a proclamação, ainda que a Carta não explicite o que deve ser feito nos casos em que não é possível aplicar a linha sucessória que definiu. O Brasil reconheceu Áñez como presidente interina.

Ataques a delegacias

Durante a madrugada, manifestantes saquearam e queimaram delegacias na capital. Temendo mais violência, moradores se organizaram e improvisaram barricadas para fechar a entrada das ruas.

Crítico de Morales, Carlos Cordero, cientista político da Universidade Mayor de San Andrés,disse ao GLOBO que a proclamação de Áñez foi um plano B da oposição, que já esperava que o partido majoritário não comparecesse à sessão.

— Eles agiram com sagacidade, porque sabiam que o MAS seguiria a cartilha da ausência de quórum. Antes mesmo de se declarar presidente interina, Añez já havia acenado às Forças Armadas e aos indígenas. A saída agora é eleitoral, e ela terá que agir muito rápido para anunciar um Gabinete representativo e plural, de transição.