Título: O papel da polêmica
Autor: Cleusa Maria
Fonte: Jornal do Brasil, 09/04/2005, Caderno B, p. 1

Destino do acervo de originais da coleção de periódicos divide direção e funcionários da Biblioteca Nacional

Uma intrincada polêmica envolvendo a maior coleção de periódicos do país está colocando em trincheiras opostas a Associação dos Servidores da Fundação Biblioteca Nacional, no Centro, representada por um grupo de bibliotecários e pesquisadores, e a direção da instituição, na voz da diretora do Centro de Processos Técnicos, Célia Zaher. O conflito, que vem mobilizando os bastidores da casa, se acirrou em janeiro com a exoneração da coordenadora da área de publicações seriadas, Maria Angélica Brandão Varella. E foi detonado esta semana com as denúncias arroladas em um documento que circula na internet e que condena a anunciada transferência dos 50 mil volumes de publicações seriadas (originais de jornais e revistas já microfilmados) do armazém do edifício-sede, na Avenida Rio Branco. O destino do acervo será o chamado Anexo, prédio doado pelo Governo Federal na década de 80 e localizado na Zona Portuária, em frente ao silo número 9. O Anexo, que se encontra em obras, acolherá os jornais e revistas a partir de maio. Os bibliotecários protestam contra a mudança de endereço da coleção, alegando que o prédio não oferece segurança para receber o acervo de originais já microfilmados e que a medida colocará em risco um patrimônio da memória brasileira.

¿ O prédio era um silo e continua como depósito. Começaram uma obra de maquilagem, depois que fizemos as primeiras denúncias, em janeiro. Para guardar este acervo, que inclui os primeiros exemplares de periódicos como o Jornal do Brasil, Jornal do Commercio, Correio da Manhã e revista Fon-Fon, , o prédio precisa estar preparado, por exemplo, com uma programação de limpeza, refrigeração adequada e carga elétrica suficiente ¿ alerta a bibliotecária Angela Salles, do setor de publicações seriadas, uma das integrantes da ASFBN e funcionária do Ministério da Cultura, atualmente em greve por melhores salários.

No documento-denúncia, os funcionários da biblioteca ¿ há dois anos sob a presidência do colecionador e bibliófilo Pedro Corrêa do Lago ¿ lembram que o armazém de periódicos na sede não dispõe de espaço para o aumento das coleções e há muito se planeja a criação da Hemeroteca Nacional, na Zona Portuária. No texto, eles dizem que ¿pequenas obras efetuadas nesse espaço alternativo até o momento não o dotaram das condições mínimas necessárias para abrigar esse tipo de acervo. É precipitada a transferência nessas condições, à revelia de todos os pareceres contrários de quem entende e trabalha com o assunto há décadas¿.

De seu lado, a diretora Célia Zaher justifica a necessidade de mudança atestando que a coleção de periódicos não está segura no armazém do edifício-sede e que o local foi condenado por uma vistoria da Brigada de Incêndio. Ela conta que este é um pesadelo constante do presidente Pedro Corrêa do Lago e que a direção da casa está muito consciente deste perigo.

¿ A mudança só não foi feita ainda porque o Anexo está em obras. Lá, a coleção dos originais já microfilmados vai dispor de uma área de 4 mil m², cinco vezes maior do que a do armazém da sede. O espaço do Anexo é esplêndido, amplo, o acervo ficará mais arejado, lá é bem menos úmido do que aqui ¿ garante Célia Zaher.

No entanto, o depósito não terá ar condicionado, nem climatização:

¿ Aqui também não temos e, portanto, não haverá mudança de temperatura ¿ lembra Célia Zaher.

Numa visita ao Anexo do Cais do Porto, à primeira vista a impressão não é das melhores. A fachada pichada não condiz com a importância do acervo que irá acolher e com o nome da instituição ao qual pertence. No seu interior, porém, operários começam a preparar o piso do terceiro andar que vai guardar a coleção de originais das publicações. O Anexo já abriga, por exemplo, a coleção de jornais municipais, segundo os funcionários ¿em caixas empoeiradas no chão¿.

¿ Não estamos preocupados com maquilagem, não vamos pintar a fachada, não temos verbas e assim também não chamamos a atenção para eventuais roubos. Estamos criando infra-estrutura para acolher o acervo, pavimentando e nivelando o piso com concreto brilhante, restaurando os basculantes e instalando uma caixa de força com mais carga ¿ explica Célia, enquanto mostra o terceiro andar às visitas.

A situação das coleções da Biblioteca Nacional é agravada pela superlotação dos armazéns na sede, que completa 200 anos em 2008, planejados para abrigar 400 mil obras, e que atualmente já somam um acervo total de 8 milhões. O que tende a se complicar ainda mais com as obras depositadas através da Lei de Depósito Legal, e que devem estar acessíveis ao público. Segundo o documento da associação dos servidores da casa, essa função não está sendo cumprida. ¿Existem hoje cerca de 35 mil livros tratados tecnicamente, que o cidadão encontra nos catálogos de pesquisa on-line, mas não pode ter acesso a eles, por falta de espaço nos armazéns onde deveriam estar localizados. Os técnicos da FBN tentam, desde o início da gestão Pedro Corrêa do Lago, debater e solucionar essa questão, mas não conseguem a atenção da direção. O resultado são livros empilhados e espalhados pelos cantos, nos corredores dos armazéns, atrás ou sobre armários, poltronas, mesas dos servidores, há anos.¿

Para Célia Zaher, a transferência da coleção de periódicos seria uma forma de administrar essa falta de espaço, que ela mesma aponta, em visita da equipe do JB aos armazéns da sede da biblioteca no Centro. Na divisão de obras gerais, livros se empilham sobre mesas e no armazém das publicações seriadas as antigas encadernações ¿ que vêm sendo substituídas por pastas para evitar o manuseio dos papéis já fragilizados ¿ se espremem em prateleiras apertadas.

¿ Há mais de cinco anos não temos lugar nas estantes da sede para abrigar esses 35 mil livros que estariam à disposição de consultas. Não podemos fazer uma seleção entre eles. Avaliamos o que poderíamos tirar daqui e nada impede que a coleção de periódicos microfilmados, à qual o público já não tem acesso, seja transferida para o Anexo. Além de liberar espaço para os livros nas estantes para consulta do público, a mudança vai cumprir uma norma internacional de segurança já seguida pelas bibliotecas do mundo inteiro: a de não se guardar em um mesmo local os originais e as matrizes dos microfilmes ¿ explica Célia Zaher, ex-funcionária da Unesco em Paris e atual presidente da Associação Internacional de Bibliotecários.