O Globo, n. 31508, 12/11/2019. Opinião, p. 2

Democracia tem de ser a referência na crise boliviana


O panorama político latino americano fica mais conturbado como afastamento à força de Evo Morales da presidência da Bolívia. O líder indígena ganhou de Carlos Mesa eleições fraudadas, de acordo com parecer da Organização dos Estados Americanos (OEA). Resistiu a convocar novo pleito, foi pressionado, recuou, mas era tarde. Repete-se o roteiro do “golpe preventivo”, manobra que deveria ter sido deixada no passado. A grande vítima dessas supostas soluções é a democracia. Co moem 1964.

Desde a constatação de fraude na eleição presidencial de 20 de outubro, Evo Morales estava empenhado num impossível resgate do controle político, social, econômico e militar da Bolívia.

Morales, de 60 anos, se perdeu na ambição de continuar no poder, quando já era presidente há mais tempo do que qualquer dos 180 antecessores em 194 anos da república boliviana. A Constituição estabelece mandato de cinco anos “improrrogável”, com direito a uma única reeleição.

Conseguiu um terceiro mandato de forma casuística e com respaldo de aliados externos, como os presidentes Lula e Dilma. Em 2016 tentou mudar a Carta, que o impedia de concorrera um quarto mandato. Conseguiu lançar um referendo, mas o povo disselhe “não”. Rejeitou o resultado, recorreu e obteve um “sim” da Corte eleitoral — mesmo contra a Constituição e a vontade da maioria nas urnas. Manobra de cunho golpista.

Líder dos cocaleros (plantadores de coca), cultuado por agrupamentos da esquerda latina como ícone político do “indigenismo” —peça de ficção —, Morales dividiu o país coma obsessão pelo poder perpétuo, sempre estimulado por aliados como Lula, que, em comício ao sair da prisão, chegou a pedir apoio a ele e a seu projeto nada democrático. Porém, como candidato, fracassou até mesmo na principal promessa eleitoral: recuperara saída para o mar, perdida na guerra com o Chile no início do século, que foi negada pelo Tribunal de Haia.

A realidades e impôs na eleição presidencial, três semanas atrás, quando o desgaste da sua longevidade na presidência levou a um decisivo avanço da oposição nas urnas.

Negociou-se com a OEA uma auditoria no sistema eleitoral. O veredicto preliminar, contra Morales, foi anunciado na manhã de domingo. Seis horas depois, renunciou, ao constatar que até a influente central sindical Confederação Operária Boliviana se recusava a apoiar sua permanência no poder. E ontem obteve asilo no México. O tom melancólico do fim da sua era foi dado pelas Forças Armadas, que negam participar de um golpe, mas patrocinaram uma cena típica da velha América Latina. Não há mocinhos nesta história.

O desafio agora é construir um governo provisório e realizar eleições gerais limpas e justas, com supervisão internacional, antes de 21 de janeiro, quando terminam os mandatos legislativos. É a única saída aceitável, para que conflitos naturais numa democracia não levem forças autoritárias, de qualquer lado, a tentar aventuras.