O Globo, n. 31479, 14/10/2019. Sociedade, p. 18

Nova Santa

Renato Grandelle


Irmã Dulce agora é Santa Dulce dos Pobres. Ela se tornou ontem a primeira santa nascida no Brasil numa cerimônia que coloriu o Vaticano de verde e amarelo. A cidade-Estado, acostumada com filas imensas de turistas que querem conhecer seus museus e a Basílica de São Pedro, teve a praça tomada por 50 mil pessoas, que vieram conhecer os cinco novos anjos da Igreja Católica. A mais nova deles, única nascida no século XX, é a freira baiana Maria Rita Lopes Pontes. Os brasileiros formaram a maioria absoluta do público, e levaram bandeiras do país e camisas com a imagem da religiosa.

Estavam presentes o vice presidente Hamilton Mourão, os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli e o procurador-geral da República, Augusto Aras. O presidente Jair Bolsonaro não compareceu à cerimônia.

A primeira missa em homenagem à nova santa será celebrada hoje pelo arcebispo de Salvador, Dom Murilo Krieger, na Basílica Sant'Andrea della Valle,em Roma.A cantora baiana Margareth Menezes e o saxofonista Waldonys devem se apresentar. Antes da cerimônia de canonização, Margareth cantou um hino, mas passou despercebida pela plateia porque o sistema de áudio ainda não estava ajustado.

Por toda parte no Vaticano havia grupos de freiras e padres brasileiros, excursões de fiéis —sobretudo baianos —, vindos do Brasil ou moradores de outras regiões da Itália.

Para os protagonistas da cerimônia, a festa começou mais cedo. A sobrinha da Santa Dulce, Maria Rita Lopes, e o miraculado José Mauricio Moreira se encontraram com o Papa Francisco nos bastidores. O Pontífice foi presenteado com uma medalha e uma imagem de 30 centímetros da freira baiana.

—O Papa me disse: “A primeira santa brasileira”. Então, agora é oficial — celebrou Maria Rita, que resumiu o dia com a palavra “gratidão”.

— Sabemos como foi difícil para algumas pessoas, que não têm condições financeiras, participar de uma cerimônia dessas.

Moreira não conseguiu esconder o nervosismo — o Papa, para acalmá-lo, segurou em suas mãos para que o brasileiro parasse de tremer.

— Nunca mais vou lavar as mãos — contou, sorrindo.

— Tivemos grandes desafios no processo de canonização, como o sigilo imposto pelo Vaticano durante as investigações do milagre. Quero agradecer a todos, da Maria Rita aos depoentes do meu caso.

Força feminina

Integrante de uma comitiva que foi ao Vaticano, Bianca Lucena, de 41 anos, acredita que Santa Dulce ainda se manifesta a seus fiéis:

— José Mauricio veio com a gente, e eu senti a presença da Irmã Dulce o tempo inteiro. Tirei três fotos com ele e, em todas, os sinos de igrejas trocaram. Só pode ser um sinal.

A freira Maria Virgem Solícita, de 28 anos, também chegou à capital da Igreja Católica com um grupo de 52 religiosas de 15 nacionalidades e estava exultante:

—Santa Dulce tem um papel especial para cumprir no Brasil. Pode dar à população mais esperanças em rezar, o que abre portas para intercessão de outros religiosos, que poderão se tornar beatos e santos.

Maria torce, agora, pela canonização de Nhá Chica (1810-1895), beatificada em 2013 —dois anos após Dulce —, que já teve um milagre reconhecido pelo Vaticano: a cura da doença cardíaca de uma professora mineira.

Na missa, cujo tema era aceitação pela fé, o Pontífice comentou que é preciso “caminhar juntos” e acompanhar “os que se perderam no caminho”. É, segundo ele, o caso dos novos canonizados:

— Agradecemos ao Senhor pelos novos santos, que caminharam na fé e agora invocamos como intercessores. Três deles são freiras e nos mostraram que a vida religiosa é um caminho de amor nas periferias existenciais do mundo.

Para teólogos, os cinco religiosos canonizados têm muito em comum com o Pontífice. Principalmente Dulce, a brasileira que se tornou santa enquanto a Igreja discute, no Sínodo para a Amazônia, como ampliar a evangelização na floresta tropical.

— Francisco quer que as pessoas acompanhem o debate do sínodo — explicou Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio.

— E o encontro dos bispos têm uma participação recorde de mulheres, que ganham cada vez mais protagonismo na Igreja.

Para Francisco Borba, coordenador do Núcleo de Fé e Cultura da PUC-SP, o Papa quer usar a canonização da freira baiana para homenagear a “feminilidade santa”.

— O Pontífice quer uma Igreja com mulheres fortes. Santa Dulce escolheu cuidar dos pobres, é uma humanidade cheia de ternura — avaliou.

— Com este comportamento, ela cativava a todos, não apenas os católicos. É o mesmo que ocorre com o Papa. Todos reconhecem o seu valor e carisma.

À exceção de Dulce, todos os canonizados morreram até as primeiras três décadas do século XX, o que mostra a agilidade do processo que reconheceu a sua santidade.

— Santa Dulce tem um perfil tradicional: uma mulher que conseguiu a canonização através de obras sociais para os doentes — explicou.

—A Igreja existe por causa desses exemplos. Não são os Papas que mantêm a História da Igreja. São as forças morais e simbólicas das “santas Dulces”.

Além de Dulce, foram canonizados o britânico John Henry Newman, a italiana Giuseppina Vannini, a indiana Mariam Thresa Chiramel Mankidiyan e a suíça Margherite Bays. Bandeiras da Índia também eram vistas na Praça de São Pedro.