O Globo, n. 31508, 12/11/2019. Mundo, p. 32

Bolívia à deriva


O presidente demissionário da Bolívia, Evo Morales, pediu asilo ao México ontem, após renunciar domingo sob pressão dos militares e da oposição, em meio ao acirramento da grave crise política em que o país mergulhou após sua contestada reeleição em 20 de outubro. Enquanto as lideranças civis buscavam ontem em La Paz preencher por via constitucional o vácuo de poder deixado coma renúncia coletiva de toda a cúpula dos Poderes Executivo e Legislativo — além do chefe de Estado, saíram seu vice e os presidentes e vices da Câmara e do Senado — a situação se agravava coma marcha de milhares de apoiadores de Morales da vizinha cidade de El Alto para a capital.

O anúncio do pedido de asilo de Morales foi feito pelo chanceler do México, Marcelo Ebrard. O país, que já oferecera o asilo, confirmou sua concessão “por razões humanitárias”, uma vez que “na Bolívia, sua vida e integridade correm perigo”. O chanceler disse que pedira salvo conduto às autoridades bolivianas e “garantias de vida” para Morales, e de noite um avião enviado pelo governo mexicano pousou na região de Chapare, onde ele se refugiara. No Twitter, Morales anunciou que estava deixando a Bolívia.

“Parto rumo ao México, agradecido pelo desprendimento do governo desse povo irmão que nos brindou asilo para cuidar da nossa vida. Me dói abandonar o país por razões políticas, mas sempre estarei a postos. Logo voltarei com mais força e energia.”

A renúncia de Morales deixou um vazio de poder comas aí dadas autoridades da cadeia sucessória — todas do Movimento ao Socialismo (MAS ) do presidente — levantando questionamentos sobre quem conduzirá o país.

Congresso se reúne hoje

A sucessão foi reivindicada pela segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Añez, da oposição. Ontem, com ajuda dos militares, ela viajou do departamento (estado) de Beni para La Paz, onde foi levada ao Congresso, que precisa aceitar formalmente a renúncia de Morales e indicar seu sucessor. Ela convocou uma sessão para hoje.

— Queremos apenas a democracia e segurança. A bandeira tricolor (da Bolívia) significa unidade. Esperamos dar alguma certeza a este país — disse a senadora, que afirmou que seu principal objetivo seria a convocação de eleições em até 90 dias.

O problema é que, tanto na Câmara como no Senado, o MAS de Morales tem a maioria absoluta, e nada poderá ser aprovado sem seu voto. Para complicara situação, o recrudescimento dos confrontos que ocorrem há três semanas ameaça impedir o Congresso de se reunir. Segundo fontes parlamentares, os opositores estariam cogitando transferir a sessão de hoje para Sucre, a capital administrativa do país.

Sem a presença da polícia, que se amotinou contra Morales, La Paz amanheceu com rastros de destruição devido a confrontos ocorridos durante a noite, quando 64 ônibus foram queimados. A violência levou o chefe da polícia, Vladimir Calderón, que no domingo pedira a saída do presidente, a se demitir.

Ao longo do dia, os confrontos continuaram, em especial em El Alto, um dos principais redutos eleitorais de Morales. Milhares de moradores marcharam em direção à capital. Um dos gritos da multidão é “agora sim, guerra civil!”. A imprensa local fala em cerca de 20 feridos em confrontos. Em Cochabamba, seis carros da polícia foram incendiados. No Twitter, Morales fez um apelo ao diálogo e pediu para que seus partidários não recorram à violência.

Ao mesmo tempo, o ex-presidente Carlos Mesa, que ficou em segundo lugar na contestada eleição contra Morales, foi ao Twitter denunciar que uma multidão seguia em direção à casa dele. À noite, os militares, a pedido da polícia, anunciaram que vão ajudara controlara violência. Na véspera os militares haviam “sugerido” a renúncia de Morales supostamente porque não queriam reprimir a própria população.

Estratégias diferentes

Diante do impasse político, os dois principais líderes do movimento opositor — Mesa e o empresário Luis Fernando Camacho, líder do Comitê Cívico do departamento de Santa Cruz — têm defendido estratégias diferentes. Camacho, que radicalizou os protestos, vinha pedindo a renúncia de todos os parlamentares do MAS e, no domingo, ele falou da possibilidade de formar uma “junta de governo” com os comitês cívico se o comando militar. Ontem, porém, Camacho publicou um vídeo afirmando que a transição para um novo governo seria “democrática e constitucional”.

Mesa já vem trabalhando intensamente para reunir o Congresso, e pediu aos policiais e manifestantes que estão nas ruas que permitam achega dados parlamentares. Em entrevista, defendeu que os parlamentares do MAS não sejam expulsos, pois sua presença no Congresso permitirá uma “saída democrática”. Ontem, 33 juízes do Tribunal Supremo Eleitoral e de cortes eleitorais regionais foram presos sob acusação de manipular o pleito de 20 de outubro.

Morales, por sua vez, criticou a oposição, afirmando que seus líderes têm a responsabilidade de promovera pacificação do país. Ontem, o Parlamento recebeu a carta de renúncia de Morales, na qual ele indica que foi uma “renúncia forçada ”,“fruto de um golpe de Estado político, cívico e policial ”. Ele disse que, com a decisão, busca “evitar” a violência e expressa seu desejo para a volta da “paz social”.

“Me dói abandonar o país por razões políticas, mas sempre estarei a postos. Logo voltarei com mais força e energia”

Evo Morales, presidente demissionário da Bolívia ao anunciar que deixava o país

“Queremos apenas a democracia e segurança (...). Esperamos dar alguma certeza a este país”

Jeanine Añez, 2ª vice-presidente do Senado, primeira na linha de sucessão