O Globo, n. 31507, 11/11/2019. Mundo, p. 27

Morales renuncia após 14 anos


Depois de três semanas de protestos da oposição que culminaram com motins policiais e a perda de apoio das Forças Armadas, o presidente da Bolívia, Evo Morales, anunciou sua renúncia no fim da tarde de ontem, após quase 14 anos no poder, em pronunciamento pela TV no qual afirmou ser vítima de um “golpe cívico-policial” e negou rumores de que fugiria do país.

A renúncia foi o desfecho dramático de um domingo que começou com outro pronunciamento de Morales, feito do hangar presidencial na base da Força Aérea em El Alto, cidade vizinha a La Paz, no qual ele propôs a convocação de novas eleições, depois que o resultado preliminar de uma auditoria feita pela Organização dos Estados Americanos (OEA) apontou irregularidades no pleito de 20 de outubro. Nesta votação, que motivou denúncias de fraude e os protestos opositores, Morales concorria a um quarto mandato que havia sido rejeitado em referendo em 2016 e foi declarado vencedor em primeiro turno pelo Tribunal Supremo Eleitoral (TSE).

— É minha obrigação como presidente indígena e de todos os bolivianos assegurar a paz social. Estou renunciando para que meus irmãos e irmãs, dirigentes e autoridades do MAS [Movimento ao Socialismo, o partido governista] não se sintam hostilizados, perseguidos, ameaçados. Renuncio ao meu cargo de presidente para que [Carlos] Mesa e [Luis Fernando] Camacho não continuem perseguindo os dirigentes sociais — disse Morales ao renunciar, referindo-se respectivamente ao ex-presidente que ficou em segundo lugar em 20 de outubro e ao líder da oposição radical, que comanda o Comitê Cívico do departamento (estado) de Santa Cruz.

Vazio institucional

Camacho disse à noite no Twitter que havia uma ordem de prisão contra Morales, e este denunciou também que havia uma ordem ilegal para que fosse preso. Além disso, o presidente demissionário afirmou que sua casa em La Paz foi atacada. Vinte dirigentes do MAS pediram asilo na Embaixada do México.

Morales e seu vice Alvaro García Linera, que também renunciou, fizeram o pronunciamento da cidade de Chimoré, no departamento (estado) central de Cochabamba, berço político de presidente demissionário, onde chegaram no avião presidencial. Além deles, a presidente do Senado, Adriana Salvatierra, do MAS, terceira na linha de sucessão, também renunciou. Mais cedo, o presidente da Câmara, Victor Borda, do MAS, anunciara sua renúncia depois de ter sua casa incendiada por opositores. Com isso, configurou-se um vazio institucional.

Morales e García Linera desmentiram rumores de que deixariam o país:

— A luta não termina aqui. Os humildes, os patriotas, vamos continuar lutando pela igualdade e pela paz. Espero que tenham entendido minha mensagem. Mesa e Camacho, não prejudiquem os pobres, não façam dano ao povo. Queremos que volte a paz social. Grupos oligárquicos conspiraram contra a democracia. Foi um golpe de Estado cívico e policial. Dói muito o que aconteceu — disse Morales.

Cerca de uma hora antes da renúncia, o comandante das Forças Armadas, Williams Kaliman, “sugeriu” em comunicado lido na TV que Morales renunciasse, para permitir “a pacificação e a manutenção da estabilidade”, juntando-se ao coro de líderes opositores que pediam a saída do chefe de Estado. “Também pedimos ao povo boliviano e a setores mobilizados que cessem as atitudes de violência e desordem entre irmãos”, leu Kaliman.

O comandante geral da Polícia, general Vladimir Yuri Calderón, uniu-se à pressão do chefe militar:

— Nos somamos ao pedido do povo boliviano de sugerir ao senhor presidente Evo Morales que apresente sua renúncia para pacificar o povo da Bolívia.

Enquanto isso, o líder opositor Luis Fernando Camacho, empresário sem cargo eletivo quena última semana tomou a frente dos protestos contra Morales, entrou no palácio de governo em La Paz e se fez fotografar ajoelhado diante da bandeira boliviana e de uma Bíblia. Após a renúncia de Morales, Camacho pediu a formação de uma“junta de governo” integrada pelo “alto comando” militar e policial. Já Mesa, que aceitara as novas eleições desde que Morales não concorresse eque a oposição participasse da escolha de novos juízes do TSE, disseque a Bolívia deu “uma lição ao mundo” e “será um país novo”.

Auditoria da OEA

Morales vinha despachando de El Alto desde sexta-feira, quando policiais se amotinaram e deixaram de fazer a segurança do palácio presidencial em La Paz. Sua renúncia ocorreu em meio a uma onda de violência que se intensificou no fim de semana, quando casas de dirigentes do MAS foram incendiadas, incluindo as do governador de Oruro, Victor Vásquez, e do ministro da Mineração, César Navarro.

De acordo com o resultado oficial da eleição de outubro, Morales teve 47,08% dos votos, contra 36,51% de Mesa — na Bolívia, para vencer no primeiro turno, são necessários 40% dos votos, com uma diferença de 10 pontos sobre o segundo colocado. O resultado preliminar da auditoria da OEA, no entanto, recomendou a anulação do pleito após constatar “irregularidades que variam entre muito graves e indícios” na apuração dos votos. Segundo a auditoria, que não menciona fraude intencional, Morales venceu o pleito, mas é “estatisticamente improvável” que tenha conseguido a diferença de 10 pontos percentuais necessária para evitar um segundo turno. “No componente informático foram descobertas graves falhas de segurança”, disse a auditoria.

A Secretaria Geral da OEA pediu em nota a anulação das eleições e a indicação de novos juízes do TSE, duas sugestões que Morales aceitou em seu pronunciamento da manhã. A Procuradoria boliviana anunciou uma investigação dos sete integrantes atuais do TSE, e sua presidente, María Eugenia Choque, foi presa à noite.