O Globo, n.31.619, 02/03/2020. Artigos. p.03

Democracia e Orçamento impositivo
Marcus Abraham 

 

Há 160 anos, o então Reino da Prússia, que veio a se tornar o principal Estado-membro do Império Alemão, se via às voltas com a necessidade de aumentar os gastos bélicos para fazer frente às guerras que enfrentava.

Tal situação instaurou um “impasse orçamentário” nos anos de 1860-1866, entre o Poder Executivo e o Parlamento, que rejeitava sucessivamente o aumento das despesas.

Sob o comando do chanceler Otto von Bismarck, o conflito político é transferido para a arena jurídica, através da construção dogmática do jurista Paul Laband, do Orçamento público como “lei meramente formal”, mitigando o seu caráter de lei material. Esvaziava-se, então, o perfil impositivo do Orçamento, ao argumento de tratar-se de mero ato administrativo de autorização de gastos, e validaram-se juridicamente os ideais do princípio monárquico prussiano, garantindo a soberania do monarca autoritário em detrimento do Parlamento.

De modo pouco afortunado, tais premissas, ainda hoje, configuram as bases do contexto jurídico-orçamentário brasileiro, não obstante o ambiente democrático em que nos encontramos a partir da Constituição de 1988. Aliás, desde a sua redação original, até os dias atuais, nunca se viu nela a expressão “autorização” para as verbas orçamentárias, e, sim, o verbo “fixar” a despesa pública (§ 8º, art. 165).

Com as Emendas Constitucionais 100/ 2019 e 102/2019, tornou-se literalmente obrigatória a execução plena do Orçamento, e não apenas as provenientes de emendas parlamentares individuais ou de bancada. O novo § 10 do art. 165 impõe à Administração, sem se limitar às emendas, o dever de executar obrigatoriamente as programações orçamentárias, para garantir a efetiva entrega de bens e serviços à sociedade. Em seguida, o § 11 estabelece as exceções ao Orçamento impositivo, a fim de assegurar o equilíbrio fiscal. Infelizmente, vivemos em um contexto de “desvalorização orçamentária”. Não podemos continuar a aplicar, sem uma releitura, o binômio labandiano “lei formal-lei

material” da natureza jurídica do Orçamento. Trata-se de um construto de mais de século e meio, produzido em um contexto constitucional diverso do estado democrático de direito em que vivemos hoje.

O Orçamento público impositivo é um instrumento democrático e fundamental para o desenvolvimento da nação brasileira, e a execução orçamentária em sua plenitude, ressalvadas as limitações legais, financeiras ou técnicas, é um imperativo para a efetivação do princípio da dignidade da pessoa humana. Do contrário, teríamos um Orçamento que seria mera “obra de ficção”.

Se, por um lado, não se pode conferir um poder ilimitado ao Poder Executivo para elaborar e executar o Orçamento público conforme sua conveniência; por outro, não se pode reduzir o papel do Poder Legislativo a mero “carimbador” do Orçamento, e nem este servir para realizar interesses individuais. Ambos os comportamentos não se coadunam com o modelo republicano brasileiro.

Espera-se a superação das divergências ideológicas e político-partidárias, e que cada um dos Poderes ceda em prol do interesse uno da nação, num compromisso nacional para ampliar a capacidade governamental em melhor gerir os recursos destinados à nossa sociedade, empregando-os naquilo que nos é efetivamente prioritário, cabendo a cada um de nós acompanharmos em que se usará o meu, o seu, o nosso dinheiro.