Título: A economia política de João de Deus
Autor: Ubiratan Iorio*
Fonte: Jornal do Brasil, 11/04/2005, Outras Opiniões, p. A11

Na Laborem Exercens, o papa ressalta a importância da co-propriedade dos meios de produção, com ênfase na empresa privada e na economia de mercado

O falecimento de João Paulo II, o Grande, tem suscitado discussões - alimentadas pela indústria da desinformação - sobre a escolha de seu sucessor no trono de São Pedro, destacando-se as que colocam o papa polonês - e especulam sobre o seu sucessor - no rol dos ''conservadores'' e as que o rotulam de ''progressista'', ambas impróprias para designar um representante de Cristo na terra, uma vez que Jesus nos falou de um reino que não pertence a este mundo e de uma vida eterna. A Doutrina Social (DSI), conjunto de ensinamentos contidos em diversas encíclicas e pronunciamentos papais, para orientar a atuação dos católicos na sociedade moderna, originou-se na Rerum Novarum de Leão XIII, de 1891 e foi, ao longo do século 20, passando por um processo de aggiornamento, do qual participaram todos os seus sucessores, com exceção de João Paulo I, devido ao seu curtíssimo pontificado. Ao longo de seus 26 anos de papado, Karol Josef Wojtyla manteve e aprimorou a preocupação da Igreja com as relações econômicas e sociais, apontando, em três encíclicas, os caminhos que os cristãos devem seguir para harmonizar suas atividades cada vez mais complexas no mundo da economia com os princípios morais eternos contidos nos Santos Evangelhos e nas cartas e atos escritos pelos primeiros apóstolos. A DSI não pertence ao âmbito das ideologias, mas ao da teologia, especialmente ao da teologia moral. Assim, as três encíclicas ''sociais'' do recém-falecido Pontífice - a Laborem Exercens (LE), de 1981, a Sollicitudo Rei Socialis (SRS), de 1988 e a Centesimus Annus (CE), de 1991 - são exemplos do caráter de teologia e antropologia moral da DSI.

Na LE, o papa ressalta a importância da co-propriedade dos meios de produção, com ênfase na empresa privada e na economia de mercado; realça também a dignidade da pessoa humana como marco para o estabelecimento de salários justos, mas sem qualquer alusão opinativa sobre critérios de política econômica para atingir tal objetivo; por fim, ao afirmar que a ''temperatio'' (ordenação social) deve subordinar-se à iniciativa das pessoas (grifo nosso), rejeita claramente um sistema de planificação central de viés socialista.

Escrita em 1988, a SRS parece inovar ao agregar o conceito de direito à livre iniciativa econômica, mas, na verdade, João Paulo II apenas retomava uma tradição de Leão XIII, que defendeu os direitos de propriedade; de Pio XI, que insistiu no Princípio da Subsidiariedade; de Pio XII, que observou que a economia é o fruto da livre iniciativa dos indivíduos.

Na mais importante, a Centesimus Annus, de 1991, o papa elabora uma nova interpretação da iniciativa, da capacidade empresarial, do lucro e do sistema capitalista, fundamentando-a nos princípios, sempre caros ao Cristianismo, da destinação universal dos bens e da propriedade privada individual. Ao analisar esta última, o papa salienta a importância de uma forma de propriedade que transcende a definição tradicional de capital, que é a propriedade do conhecimento, da técnica e do saber, que vem a ser a incorporação da Teoria Econômica do Capital Humano. A raiz ética e cultural da economia empresarial moderna é a liberdade integral da pessoa humana, no centro da qual está sua dimensão religiosa, assentada em um sólido contexto político-jurídico, que seja capaz de prevenir danos e degenerações e de reduzir ao mínimo os efeitos indesejados. Encerramos esta pequena homenagem ao grande papa com uma frase lapidar da CE, que desautoriza de forma claríssima a chamada Teologia da Libertação:

''A atividade econômica, em particular a da economia de mercado, não pode realizar-se num vazio institucional, jurídico e político. Pelo contrário, supõe segurança no referente às garantias da liberdade individual e da propriedade, além de uma moeda estável e serviços públicos eficientes. A principal tarefa do Estado é a de garantir esta segurança, de modo que quem trabalha e produz possa gozar dos frutos do trabalho sinta-se estimulado a cumpri-lo com eficiência e honestidade. A falta de segurança, acompanhada pela corrupção dos poderes públicos, é um dos obstáculos principais ao desenvolvimento e à ordem econômica''.

*Ubiratan Iorio (lettere@ubirataniorio.org) escreve às segundas-feiras para o JB