O Globo, n. 31506, 10/11/2019. Rio, p. 14

Fora da área de cobertura
Rafael Galdo


À primeira vista, a Rua Ibiracoa parece uma via tranquila do bairro de Colégio, com pouco movimento e casas típicas da Zona Norte, quase todas com quintal. No entanto, seus moradores não conseguem receber pelos Correios as mercadorias compradas pela internet e, se pedirem um carro pelo aplicativo Uber, vão se deparar com a mensagem “local inacessível”. Levantamento do GLOBO revela que 80% dos 162 bairros do Rio têm áreas, como a de Colégio, que sofrem alguma restrição para a prestação de serviços públicos e privados devido à violência. Isso acontece tanto no subúrbio como perto da orla, em favelas ou no asfalto.

A reportagem traçou um quadro do problema pesquisando, em todos os bairros da cidade, as condições de entrega em domicílio, a disponibilidade de viagens por aplicativos de transportes, a distribuição de mercadorias no comércio e as limitações impostas por criminosos. Do total, 127 tinham pelo menos uma área excluída de serviços. Só nos Correios, ao consultar centenas de CEPs numa ferramenta do site da empresa, foram encontrados 109 bairros com trechos fora de rota ou que dependem de condições especiais de entrega, como escolta. No aplicativo Uber, foi possível identificar ruas de 20 bairros sem atendimento.

As zonas de exclusão na cidade são resultado das ações de milícias, do tráfico de drogas e de quadrilhas de roubos de cargas, que delimitam territórios e impõem entraves ao direito básico de ir e vir. Os Correios, numa audiência realizada mês passado na Assembleia Legislativa (Alerj), admitiram ter impedimentos para entregas domiciliares de mercadorias em 42% dos CEPs do Rio.

É o caso da Ibiracoa, a duas quadras de um acesso à Favela Jorge Turco. Quando seus moradores contam histórias do local, a impressão de rua pacífica se apaga. Francisco Damasceno lembra que, há um ano, um motorista de Uber foi assaltado e mantido refém. Já Pedro Paulo Guimarães relata um passado recente de ataques a veículos de entregas.

— Todo mundo sabe que a mercadoria vai para a Feira de Acari (a cerca de um quilômetro de Colégio) — desabafa Pedro Paulo. — Se a gente faz uma encomenda, tem que buscá-la no correio de Irajá. Nem a polícia, quando precisei, veio aqui à noite.

Bairros próximos às áreas mais conflagradas da Zona Norte, como Inhaúma, no entorno do Complexo do Alemão, e nas imediações da Cidade Alta, em Cordovil, são os mais atingidos. Mas também está sem entregas o trecho de Botafogo da Ladeira dos Tabajaras. E, em tentativas no aplicativo Uber, foram identificados como “locais inacessíveis” a parte da frente do famoso Bar do David, no Chapéu Mangueira, no Leme, a Rua 1, de acesso à comunidade Júlio Otoni, em Laranjeiras, ou parte da movimentada Rua Edgard Werneck, na Cidade de Deus.

Muros invisíveis

Em Guadalupe, com o aplicativo de trânsito Waze ligado, um alerta toca na Estrada do Camboatá: “entrando em área com risco de crime”. Já na Pavuna e em Anchieta, perto dos complexos do Chapadão e da Pedreira, barricadas marcam as “zonas proibidas”. De 1º de janeiro a 30 de outubro deste ano, 361 (12%) dos 2.979 relatos sobre barreiras do tráfico feitos ao Disque Denúncia (2253-1177) têm os dois bairros como cenários— em todo o estado, foram 8.904 denúncias, 13,6% a mais do que em 2018.

A maioria das áreas restritas, porém, não tem trincheiras, apenas “muros invisíveis”. Até ruas principais de Ricardo de Albuquerque estão sem entrega dos Correios. O comércio enfrenta dificuldade, pois muitas transportadoras se recusam a distribuir produtos no bairro. A rotina de Luciano Santos, dono de um mercadinho na Rua Japoara, mudou:

— O problema não é Ricardo de Albuquerque. Por conta de roubos de cargas no entorno, muitos não se arriscam a entregar produtos aqui. Preciso sair de casa às 4h50m para comprar mercadorias na Ceasa. Grandes lojas de móveis e eletrodomésticos também se negam a entregar.

Em Santa Cruz, comerciantes com lojas perto da favela de Antares vão buscar mercadorias nos depósitos das transportadoras ou pagam o dobro pelo frete. Em Piedade, em meio a disputas entre traficantes e milicianos, os obstáculos são parecidos. Denilson Gonçalves da Fontes pensa em fechar o hortifrúti na Rua Assis Carneiro, perto do prédio abandonado da Universidade Gama Filho:

— Até as padarias só abrem depois das 7h. Antes disso, é inviável ficar na rua.

O impacto econômico vem em cadeia. Segundo a Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (Abcomm), o Rio é o segundo destino do país, depois de São Paulo, em vendas do setor. A cidade chegou a concentrar 14% das compras, mas o índice recuou para 9,5% entre 2016 e 2017, no auge do roubo de cargas. O percentual hoje alcança 11% e ensaia uma recuperação.

Bairros inteiros isolados

> Em Cavalcanti, ainda se desfila o orgulho da Em Cima da Hora, escola de samba de clássicos como “Os sertões”, de 1976, um dos maiores sambas de enredo de todos os tempos. Moradores também se lembram de antigos vizinhos, como o coreógrafo Carlinhos de Jesus e o jornalista Sérgio Cabral, pai do ex-governador atualmente preso em Bangu. Hoje, no entanto, pelas ruas do bairro, circula o lamento pelo presente marcado pela violência e distante das glórias do carnaval.

> O bairro é uma das áreas do Rio onde todos os CEPs têm restrições de entregas dos Correios. Dona Dejacy Goulart conta que a rua em que morava Cabral é frequentada por traficantes. Ela continua trabalhando no bairro, mas se mudou com a família para Todos Os Santos. Foi morar num apartamento, deixando para trás uma casa confortável com piscina, que aluga por um preço abaixo da média do mercado:

> “Aquele lugar já teve tanta alegria, mas tudo passa... Saímos dali no momento certo", revela Dejacy.

> O bairro ainda guarda um certo ar pacato, por vezes atrapalhado por confrontos. De um lado da linha do trem está o Morro do Urubu; do outro, o da Primavera. Moradores relatam assaltos em pontos de ônibus e até dentro do trem.

> “É por isso que não fazem entregas aqui”, diz a manicure Claudia Aguiar. “Até evito fazer compras pela internet. Teria que buscar a encomenda no posto da Penha”.

> Engenho da Rainha, Honório Gurgel, Jardim América e Acari são outros bairros que não têm entregas na maioria de suas ruas.