O Globo, n. 31506, 10/11/2019. Economia, p. 36

Portugal economiza € 3 bi por ano com reforma
Gian Amato


O governo de Portugal entregou à União Europeia, no mês passado, um esboço do seu Orçamento para 2020. Pela primeira vez, o documento prevê déficit zero. Um dos fatores que contribuíram para esse cenário inédito desde a redemocratização do país, em 1974, foi a reforma administrativa do setor público. Em uma década, Portugal reduziu em € 3 bilhões seu gasto anual com servidores públicos.

A exemplo do Brasil, onde o governo deve apresentar esta semana uma proposta de reforma administrativa para frear o crescimento dos gastos com afolha de pagamentos, Portugal foi levado à medida pelo desiquilíbrio nas contas públicas. Mas a reforma por lá foi desencadeada num quadro fiscal muito pior, na crise que varreu a Europa na sequência da quebra do Lehman Brothers, nos EUA, em 2008. Coma economia portuguesa em colapso, o governo foi forçado a implementar uma série de medidas de austeridade para cumprir as contrapartidas do resgate financeiro de € 78 bilhões concedido, em 2011, pela troika, o triunvirato formado por Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Central Europeu e Comissão Europeia.

Naquele ano, havia 727.785 funcionários do Estado Português. Em junho de 2019, segundo a Direção Geral da Administração e do Emprego Público (DGAEP), são 690.494, queda de 5,2%. Da população empregada, 15% estão no setor público, menos que a média da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), de 18%.

Reposição 2 por 1

Mesmo com 37,2 mil funcionários amenos, o governo português mantém um plano para reduzira folha. Uma das principais regras em vigor desde 2008 é a “2 por 1”: um novo servidor só é contratado depois que dois se aposentam. A reestruturação do Estado acabou com progressões portem pode serviço e reduziu mais de mil carreiras gerais a apenas três nas funções administrativas: as de nível básico, intermediário e superior.

Em 2009, Portugal gastou 14% do Produto Interno Bruto (PIB) com pessoal, segundo o Conselho de Finanças Públicas (CFP), o equivalente a € 24,6 bilhões. Em 2018, essa despesa caiu para € 21,7 bilhões, ou 10,8% do PIB, ainda acima dos 9,9% da União Europeia e dos 10% do Brasil.

— Houve, efetivamente, uma economia de gastos, mas durante contextos diferentes — diz Paula Espírito Santo, professorado Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa.

Portugal começou sua reforma em 2006, com o então primeiro-ministro socialista José Sócrates. O Programa de Reestruturação da Administração Central do Estado (Prace) extinguiu 36% de mais de 500 órgãos e conselhos. Dos 5.254 diretores de serviços, chefes de divisão e equipe, restaram 3.947, um corte de 24,9%. Mas não foi suficiente. Em 2011, a crise fiscal explodiu e a troika impôs medidas mais drásticas, como corte de salários.

Em apenas um ano e três meses, Portugal cortou os 13º e 14º salários que tinham os servidores. Subsídios de Natal e férias foram extintos para funcionários da ativa e aposentados. As contribuições para a Caixa Geral de Aposentações subiram para 14% do salário bruto. Aposentadorias acima de € 1,5 mil sofreram reduções de até 10%, e as que excediam € 7,5 mil tiveram corte adicional de 50%. O valor das horas extras caiu pela metade. O salário mínimo estacionou em € 485 de 2011 a 2014.

— A política continuou com o governo de centro-direita de Passos Coelho, sob a troika. Depois, o socialista Antônio Costa (atual primeiro-ministro) aliviou esse peso. A reforma atingiu os três poderes, mas foi muitíssimo mais dura e drástica no Executivo — conta o professor do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, João Bilhim, que atuou no Prace e foi o primeiro presidente da Comissão de Recrutamento e Seleção para a Administração Pública, em 2011. — Até a redução de salários, que a Constituição não permitia, foi justificada pelo Tribunal Constitucional no período.

Reflexo nos serviços

O controle dos gastos públicos em Portugal foi acompanhado de uma retomada do crescimento econômico e de geração de vagas nos últimos anos. Sindicatos de servidores e parte da população ficaram insatisfeitos com a mudança, pois se sentiram prejudicados pelos cortes nos orçamentos dos serviços públicos feitos simultaneamente. Um relatório do Conselho Nacional de Educação (CNE) revela que o ensino público perdeu 30 mil professores do pré-escolar e do secundário entre 2006 e 2016. Na saúde, há relatos de falta de médicos e enfermeiros em cidades do interior e 30% dos pacientes esperaram tempo mais que o recomendado por uma cirurgia.

— Fomos os mais penalizados para Portugal ter o luxo do déficit zero. Até hoje não conseguimos nos refazer. Há enorme falta de pessoal e filas às portas do serviço público. Funcionários reformados não foram substituídos e os que ficaram tiveram burnout (estresse por sobrecarga de trabalho) — disse José Joaquim Abraão, secretário-geral da Federação de Sindicatos da Administração Pública (Fesap).

Com a retomada do crescimento, em 2016, o primeiro-ministro reeleito Antônio Costa reverteu alguns cortes e aumentou o salário mínimo do país de € 505 para € 600. A taxadedesempregoéde6,2%, a mais baixa em 17 anos. Na vizinha Espanha, é de 13,8%.

— A grande lição é a percepção por cidadãos e pelos funcionários de que recursos do Estado são escassos. Não são ilimitados —diz Bilhim.

“A grande lição é a percepção de que recursos do Estado são escassos, não ilimitados”

João Bilhim, professor da Universidade de Lisboa