O Globo, n. 31506, 10/11/2019. Mundo, p. 44

Pressionado por motins da polícia, Morales pede diálogo


Após a eclosão de motins de unidades da polícia em sete dos nove departamentos (estados) da Bolívia na sexta-feira, o presidente Evo Morales advertiu no Twitter que “a democracia está em risco” e pediu à população que se mobilize para protegê-la. O movimento policial, que teve origem aparentemente em reivindicações setoriais, agrava a crise política boliviana, inicia dacoma recusada oposição em aceitara vitória de Morales no primeiro turno nas eleições presidenciais de 20 de outubro, sob alegação de fraude. Muitos policiais amotinados deram declarações de apoio à oposição. Ontem, pressionado, Morales se dirigiu à nação convocando os partidos políticos ao diálogo, mas teve resposta negativada oposição, aumentando o impasse.

“Irmãs e irmãos, nossa democracia está em risco devido ao golpe de Estado lançado por grupos violentos que prejudicam a ordem constitucional”, diz o tuíte do presidente, que conclamou ao povo boliviano a “cuidar pacificamente da democracia e da Constituição para preserva rapaz e a vida”.

Os motins começaram na Unidade Tática de Operações Policiais de Cochabamba, no centro da Bolívia, e espalharam-se para outras cidades, como Sucre, Santa Cruz, Potosí e Oruro. Em Cochabamba, os amotinados exigiam a princípio a demissão do chefe de polícia local, Raúl Grandy, por ter dado declarações a favor de movimentos sociais leais ao governo envolvidos em confrontos com a oposição. Ele acabou sendo substituído na própria tarde de sexta-feira pelo ex-diretor nacional de Trânsito Jaime Edwin Zurita, mas o amotinamento prosseguiu. Ontem, o comandante de polícia de Santa Cruz, coronel Igor Echegaray, também foi retirado do cargo, e seu substituto, Miguel Mercado, aderiu aos protestos.

‘Nada a negociar’

Segundo o jornal El Deber, entre as reivindicações dos policiais rebelados em Cochabamba estão o nivelamento salarial e de aposentadorias com os membros das Forças Armadas e a garantia de independência em relação ao governo.

Em sua convocação ao diálogo, Morales incluiu apenas os partidos políticos que elegeram representantes ao Congresso nas eleições de 20 de outubro, e excluiu os comitês cívicos que impulsionam os protestos para que renuncie. Ele falou da Base Aérea de El Alto, nos arredores de La Paz.

— Convoco a uma agenda aberta para pacificar a Bolívia. Convoco de maneira urgente, imediata. Esperamos ser escutados — disse o presidente, que conclamou os policiais a porem fim a os motins e convidou organismos internacionais, como a ONU e a OEA, e igrejas a acompanharem o diálogo.

No entanto, seu apelo foi rechaçado pelos dirigentes opositores que estão à frente da mobilização pública.

— Não tenho nada a negociar com Evo Morales e seu governo — disse o candidato derrotado nas eleições, Carlos Mesa, que mais cedo no Twitter rebatera a acusação de tentativa de golpe de Estado, feita por Morales, como “uma mentira que o governo está tentando passar em nível nacional e internacional”.

O reitor da Universidade Mayor de San Andrés, cujos alunos e funcionários estão mobilizados contra Morales, também rejeitou a oferta de diálogo como inócua.

— Quem está realizando a mobilização é a sociedade civil, não os partidos políticos — disse Waldo Albarracín.

Na sexta-feira e ontem, manifestantes antigoverno saíram às ruas e fizeram vigília junto a unidades militares em várias cidades dando apoio ao movimento policial e pedindo que as Forças Armadas se unissem à oposição.Manifestantes invadiram uma TV e uma rádio públicas em La Paz, e incendiaram a casa do governador de Oruro, do Movimento ao Socialismo (MAS), de Morales. Por sua vez, vários políticos do partido governista anunciaram sua renúncia, como os prefeitos de Sucre e Potosi, um senador e o governador de Potosi, para pressionar pelo diálogo. Líderes opositores prometem manter pressão sobre Morales.

— Não podemos dar um passo atrás — disse Marco Pumari, do movimento cívico de Potosi.

A presidente do Senado, Adriana Salvatierra, do MAS, pediu calma e disse que as autoridades estão estabelecendo um diálogo com os policiais amotinados para tentar encontrar uma solução pacífica para a crise. Na noite de sextafeira, o ministro da Defesa, Javier Zavaleta, indicou que o governo não vai mobilizar nem enviar os militares para conter os motins.

Militares pedem solução

Ontem, em pronunciamento conjunto, os chefes militares indicaram que as Forças Armadas “nunca enfrentarão o povo”, e defenderam que “os atuais problemas gerados no âmbito político devem ser solucionados no marco dos mais altos interesses da pátria, antes de chegara momentos irreversíveis ”.

O empresário e advogado Luis Fernando Camacho , líder radical do opositor Comitê Cívico de Santa Cruz que prega uma intervenção das Forças Armadas para retirar Morales do poder, saudou os motins policiais e respondeu ao tuíte de Morales: “Não viemos derrubar um presidente, viemos libertara Bolívia de sua ditadura ”. Camacho já anunciou que amanhã encabeçará uma marcha ao palácio de governo em La Paz afim de entrega ruma carta de renúncia para que Morales a assine. O presidente, no entanto, no poder desde 2006, já deixou claro que não pretende abandonar o cargo.

Para o sociólogo Daniel Moreno, diretor da ONG Ciudadania, não está claro se o motim chegará a todo o país, “mas é um fato simbólico de desobediência da polícia em relação ao governo”. Ao GLOBO, Moreno também associou o motim ao discurso de alguns dias atrás de Camacho convocando as Forças Armada se a polícia ase rebelarem.

— Por enquanto, o governo ainda não convocou as Forças Armadas às ruas, mas não se sabe se por prudência ou por fraqueza. Se os militares apoiarem o motim, Evo pode cair, mas seria vítima de um golpe de Estado.

Carlos Cordero, cientista político da Universidade Mayor de San Andrés, crê que Morales, ao fazer o apelo ao diálogo, ignorou o relatório da OEA durante as eleições apontando irregularidades.

— Eles (o governo) insistem que não há evidência de fraude, e os cidadãos estão convencidos da existência de uma fraude monumental. Tudo parece apontar para o fim do ciclo de Evo. (Colaborou Marina Gonçalves)