O Globo, n. 31530, 04/12/2019. País, p. 4

Alto impacto

Isabella Macedo
Gabriel Shinohara
Gustavo Maia
Rayanderson Guerra
André de Souza


Líderes partidários articulam construir uma maioria na Câmara capaz de garantir que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da prisão imediata em segunda instância atinja outras esferas da Justiça. A previsão do presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEMRJ), é que a comissão especial para debatê-la seja instalada hoje. O texto estabelece a execução da pena depois da sentença em segunda instância não apenas na área criminal, mas nas outras esferas, como cível e tributária.

Assim, uma dívida fiscal de uma empresa poderia ser executada antes dos recursos aos tribunais superiores, ou uma ação cível sobre um divórcio, por exemplo, poderia ter definição antecipada (leia mais abaixo).

Como a PEC propõe extinguir os recursos apresentados ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e ao Supremo Tribunal Federal (STF) como forma de abreviar o trânsito em julgado das ações penais, ramos do Direito que têm tribunais superiores próprios, como o trabalhista (TST) e o eleitoral (TSE), estão fora do alcance da PEC.

Acordo fechado na semana passada entre senadores e deputados previu prioridade a essa PEC da Câmara, em detrimento de um projeto de lei sobre o mesmo assunto que tramita no Senado. A despeito do combinado entre líderes, um grupo de senadores ainda insiste na votação da proposta que tramita na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, e que modifica o Código Penal e teria tramitação mais rápida que a PEC. Ontem, sem citá-los, Maia criticou quem quer “jogar para a galera”. Ele avalia que a mudança na Constituição teria menos chance de ser contestada no futuro:

— Se for para jogar para galera, para aprovar qualquer coisa que depois o Supremo vai derrubar e vai continuar esse ciclo de insegurança para todos e morosidade do Judiciário, a gente pode fazer cena. Mas acho que o papel do Congresso é ter coragem de falar para as pessoas o que, do nosso ponto de vista, é o melhor encaminhamento nesse tema, para se resolver de forma definitiva — disse Maia.

De autoria do deputado Alex Manente (Cidadania-SP), a PEC da Câmara prevê que, além da prisão, a execução de precatórios, por exemplo, ocorreria logo após a condenação por tribunal colegiado. Manente defende que a PEC não é “casuística”, e traz simetria em todas as esferas da Justiça.

Ao mexer em outras áreas do Judiciário, o texto pode sofrer maior contestação no Congresso — o debate sobre execução de pena em segunda instância vinha sendo restrito à área criminal nos últimos meses. Manente, porém, afirma que o texto já previa essa ampliação e que terá apoio na Câmara.

— Já há uma construção, já existia essa discussão. E a maioria dos deputados entendeu que era algo positivo, para a gente não trazer o casuístico exclusivamente para a área criminal. Isso traria uma simetria para a relação entre as esferas e não postergaria decisões que demoram 20, 25 anos nas esferas que não são a criminal — defendeu o deputado.

Calendário

A comissão especial pode alterar o texto antes de enviá-lo ao plenário da Câmara. Líder do PL, Wellington Roberto (PB) concorda com Manente e diz ser a favor de um projeto “para todos”.

— Eu sou a favor da segunda instância nessa condição, democraticamente para todos. Não especificamente para uma determinada categoria ou coisa parecida. Se é para fazer justiça, vamos fazer para todos.

Segundo o líder, “a corrupção pode ser atribuída a muita gente” e, por isso, é necessário autorizar a prisão em segunda instância de forma abrangente.

— A corrupção é genérica. Quando acontece, pode ser atribuída a muita gente, independente de poderes e de quem quer que seja. O corrupto não está carimbado (na área criminal) — disse.

José Nelto (GO), líder do Podemos na Câmara, também apoia a abrangência das mudanças na segunda instância, mas defende que a PEC ande ao mesmo tempo que o projeto de lei do Senado. De acordo com Nelto, os processos tributários, por exemplo, deveriam ser incluídos nas modificações.

— Segunda instância tem que valer também para a área tributária, tem que valer para o cível, tem que valer para o eleitoral, é tudo segunda instância — disse.

Aprovação deve ter mais impacto na área tributária

Ao estender a execução de pena após a condenação em segunda instância a outras áreas do Direito além da criminal, a PEC da Segunda Instância em tramitação no Congresso pode provocar transformações ainda incertas na esfera tributária, por exemplo, segundo avaliação de especialistas ouvidos pelo GLOBO. O projeto ainda inclui o Direito Civil.

O advogado tributarista Luís Luís Carlos Ferreira dos Santos Junior avalia que a área é das mais litigiosas no Direito, e que nova mudança possa levar a uma insegurança maior.

— As questões tributárias não são claras o suficiente sobre como o contribuinte deve se comportar, a quem pagar, qual tributo pagar, onde pagar e quando pagar. A PEC pode trazer uma maior insegurança — afirma.

É comum que causas tributárias levem muitos anos para serem definitivamente julgadas, o que pode mudar com a eventual aprovação da PEC. Ferreira cita uma decisão recente do Supremo Tribunal Federal (STF), que estabeleceu a exclusão do ICMS do calculo da PIS e do Cofins ajuizada em 1992 e que só foi apreciada em 2017. A decisão foi favorável aos contribuintes e levou 17 anos.

Caso a PEC seja aprovada, a parte condenada deverá fazer o pagamento do tributo ou um depósito judicial. Atualmente, ações tributárias se dividem em dois processos. O tributo devido é reconhecido na esfera administrativa, numa ação de mérito sobre a dívida. Depois disso, pode ter início um processo judicial de execução, sem a necessidade de discutir previamente na Justiça se aquela cobrança foi correta ou não.

Em efeitos práticos, caso a PEC seja aprovada, isso poderá fazer com que, quando houver decisão em segunda instância, o depósito em juízo seja executado. Por outro lado, se a decisão for favorável ao contribuinte e houver pedido de restituição, ele poderá requerer o valor.

No caso dos precatórios — dívidas reconhecidas judicialmente que devem ser pagas pela União, estados e municípios —, a PEC pode mudar alguns pontos. Hoje só há a expedição do precatório após o trânsito em julgado dos dois processos (o que discute o mérito da dívida e o que trata da execução). O advogado especialista em Direito Tributário Daniel Corrêa Szelbracikowski diz que é possível que, uma vez aprovada a PEC, a expedição do precatório se dê já no primeiro processo.

— Claro que a aprovação desse projeto pode ensejar uma modificação dessa jurisprudência, para entender que basta o trânsito em julgado da ação de conhecimento para que se expeça o precatório. Mas acho que não vai mudar, porque a orientação dos tribunais falada certidão de trânsito em julgado da ação de execução — disse Szelbracikowski.

Mesmo que haja mudança prática, isso não é garantia de pagamento rápido. Após a expedição do precatório, a União tem um tempo para pagar, que, dependendo do caso, pode levar até dois anos e meio. No caso dos estados e municípios, pode demorar ainda mais. 

Direito civil

Já na área cível, o professor José Luiz Gavião de Almeida, da Universidade de São Paulo (USP), ressalta que a execução provisória da pena já ocorre em muitos casos.

— As prisões dadas nos tribunais na área cível já podem ser executadas na primeira instância. Existe recurso para os tribunais superiores, mas esses recursos, em regra, não têm efeito suspensivo. Existem decisões que são cumpridas liminarmente. Por exemplo: a Lei de Alimentos, para devedores de pensão. O juiz, já no despacho inicial determina a prisão até que o débito seja pago.